domingo, 31 de março de 2013

Poesia | Ary dos Santos - Retrato do Herói



Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.

Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.

Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.

Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.

José Carlos Ary dos Santos

Música de Intervenção | Adriano Correia de Oliveira - Trova do Tempo que Passa



Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
o vento nada me diz.

La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la, [Refrão]
La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la. [Bis]

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

[Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

sábado, 30 de março de 2013

Artigos de Opinião | Jorge Messias - A Globalização da Fome e da Pobreza

«O latifúndio no Brasil renovou-se e, hoje, administra um moderno sistema chamado agronegócio que controla terras e produção. Dados recolhidos no censo agropecuário de 2006 indicavam que o produto de 3,35% dessas unidades (todas acima dos 2500 hectares de extensão) corresponde a 61,57% do total obtido. No outro extremo, as herdades com menos de 100 hectares ocupavam 55,53% das terras aráveis» (Inácio Werner, quadro técnico católico, coordenador de projectos do Centro Burnier Justiça e Fé).


«A experiência do agronegócio brasileiro testemunha um novo colonialismo transnacional. Há grupos dominantes brasileiros em todos os países latino-americanos... Por exemplo, na Argentina, desde 2001 que um sem número de operações financeiras, fusões e aquisições, desloca 'activos' da burguesia nacional para a burguesia brasileira. Pode citar-se muitos exemplos: a aquisição da Pecom Energia pela Petrobrás; a compra da Quimes Alimentos e Bebidas pela Ambev; a absorção da Loma Negra (cimenteira produtora de metade do cimento argentino) pela Camargo Correia, etc., etc. Alguns exemplos de negócios, de entre centenas de outros deste tipo...»(Frederico Dala Firmino, «O novo colonialismo transnacional, 2010»).


«O Brasil bate todos os recordes na produção e exportação de alimentos. Mas o Brasil é hoje uma colónia americana e uma plataforma de exportação das transnacionais. A lição histórica mais importante que devemos retirar, do ponto de vista económico, político, social e cultural, é que se torna urgente romper, de vez, com o sistema capitalista e imperialista!» (Illaese/Goggle).


Digamos claramente: acabou-se a comédia do papa velho que dá lugar a um novo papa… Um folclore já visto. Falemos em...coisas sérias!

São conhecidas as dificuldades em que o capitalismo mundial se enredou. Um dos grandes problemas que se coloca aos banqueiros (se não o principal) consiste em constatarem que no sistema capitalista o dinheiro abunda mas a máquina da economia não produz. A continuar-se nesta situação, a derrocada final verificar-se-á dentro de muito pouco tempo. Por isso, um pouco por toda a parte, os novos e velhos ricos tentam imaginar formas para contornarem as dificuldades.

É o caso dos países da América do Sul, nomeadamente do Brasil, o seu Estado com maior superfície, o mais povoado, o mais rico em diversidade de matérias-primas; onde o fosso entre pobres e ricos é mais profundo, o sentimento religioso mais acentuado e a noção de unidade nacional e de pátria continuam bem vivas. Por outro lado, nunca sucessivas tiranias, a corrupção generalizada ou a vizinhança avassaladora do gigante norte-americano foram capazes de asfixiar o sonho popular de um futuro socialista. O Brasil é um espelho de contradições mas reflecte também as realidades da América Latina.

É num quadro tão mal esboçado aqui, mas real, que a internacional capitalista procura fazer avançar a sua tão desacreditada globalização. A fórmula Europa está esgotada. É preciso agora, para evitar o pior, reeditar o colonialismo com uma encadernação atraente. Afinal, a crescente riqueza do Estado brasileiro apenas se sustenta de uma parte mínima das potencialidades do país. O que se impõe, de imediato, é aumentar a exploração dos trabalhadores, acelerar o processo de concentração de capitais, vender ao estrangeiro, ao desbarato, «cortar» nas funções sociais do Estado e ter mão-de-ferro, revestida de veludo, no partido comunista e nos sindicatos.

Num panorama tão rígido é, sem dúvida, necessário recorrer às formações mais qualificadas da Igreja católica. Onde há luta de classes impõe-se que o capital se apoie na religião, o grande ópio do povo. Até no discurso que serve para enganar as massas e nas falsas promessas demagógicas, encontramos o maquiavelismo populista do Vaticano e da sua Companhia de Jesus. Defendem, como se sabe, que a pobreza é um mal necessário querido por Deus e que bem-aventurados são os pobres. Anunciam depois que num Mundo novo há uma Nova Igreja, sem se deterem a explicar que mistério é esse da Igreja dos pobres se colocar ao serviço dos ricos no poder.

Pelo que pudemos entender pelas informações que entretanto chegam, o agronegócio latino-americano é uma espécie de manual da globalização aplicado à economia neoliberal. Indirectamente, recomenda normas quanto à fome, ao desemprego, à pobreza, à nova escravidão, etc.

Um convite a uma nova leitura.


(Jornal "Avante", Nº 2052, 28 de Março de 2013)

Música de Intervenção | Adriano Correia de Oliveira - O Senhor Morgado



O Senhor Morgado, vai no seu murzelo
Todo empertigado, é um gosto vê-lo.
Próspero anafado, véstia alentejana,
Calça de riscado, homem duma cana.

Vai, todo se ufana, de ir tão bem montado.
E ela da janela, seja Deus louvado,
Seja Deus louvado,
Seja Deus louvado.

O Sr. Morgado, vai nas próprias pernas
Todo bambeado, tem palavras ternas.
Para cada lado, quando passa sente,
Que é temido e amado, fala a toda a gente.

Topa um influente, sou um seu criado.
Eleições á porta, seja Deus louvado,
Seja Deus louvado,
Seja Deus louvado.

O Sr. Morgado vai na sege rica
Todo repimpado, ai que bem lhe fica.
O Chapéu armado e a comenda ao peito,
E o espadim ao lado, que homem tão perfeito.

Deputado eleito, muito bem votado.
Vai para o Te-Deum, seja Deus louvado,
Seja Deus louvado,
Seja Deus louvado.

INSTRUMENTAL

O senhor Morgado vai na sege rica
Todo repimpado, ai que bem lhe fica.
O Chapéu armado e a comenda ao peito,
E o espadim ao lado, que homem tão perfeito.

Deputado eleito, muito bem votado,
E ela da janela, eleições à porta
Vai para o Te-Deum,
Seja Deus louvado.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Poesia | Ary dos Santos - Ecce Homo



Desbaratamos deuses, procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança, imaginando
Uma causa maior que nos explique.

Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera heróis e homens e poetas.

Pois deuses somos nós. Deuses do fogo
Malhando-nos a carne, até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,

Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue, raiva, desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.

José Carlos Ary dos Santos

Música de Intervenção | Adriano Correia de Oliveira - Lira


Morte que mataste Lira,
Morte que mataste Lira,
Morte que mataste Lira,
Mata-me a mim, que sou teu!
Morte que mataste lira
Mata-me a mim que sou teu
Mata-me com os mesmos ferros
Com que a lira morreu

A lira por ser ingrata
Tiranicamente morreu
A morte a mim não me mata
Firme e constante sou eu
Veio um pastor lá da serra
À minha porta bateu
Veio me dar por notícia
Que a minha lira morreu

quinta-feira, 28 de março de 2013

Poesia | Bertolt Brecht - Analfabeto Político




O pior analfabeto é o analfabeto político.

Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão,
do peixe, da farinha, da renda, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas.


O analfabeto político é tão burro que se orgulha e enche o peito dizendo que odeia
a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta,
o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista,
mentiroso, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

Música de Intervenção | Adriano Correia de Oliveira - Exílio




Venho dizer-vos que não tenho medo
A verdade é mais forte que as algemas
Venho dizer-vos que não há degredo
Quando se traz a alma cheia de poemas

Venho dizer-vos que não tenho medo
A verdade é mais forte que as algemas
Venho dizer-vos que não há degredo
Quando se traz a alma cheia de poemas

Em qualquer parte estou presente
Tomo o navio da canção
E vou direito ao coração de toda a gente

Venho dizer-vos que não tenho medo
A verdade é mais forte que as algemas
Venho dizer-vos que não há degredo
Quando se traz a alma cheia de poemas

Venho dizer-vos que não tenho medo

quarta-feira, 27 de março de 2013

Artigos de Opinião | Ângelo Alves - «Uma Terra Sem Amos» A Crise do Capitalismo, a Luta e a Alternativa


A situação económica, social e política em Portugal coloca aos comunistas portugueses grandes desafios e responsabilidades. As questões da resistência à ofensiva do capital contra os trabalhadores e o povo; da ruptura com a política de direita por via de uma política alternativa, patriótica e de esquerda; da afirmação do socialismo como a necessária, única e urgente alternativa de fundo ao capitalismo – de que a Democracia Avançada é a actual etapa – estão na ordem do dia.

Estas são questões fundamentais, interrelacionadas e indissociáveis entre si, a que é necessário dedicar atenção, reflexão e acção, num quadro em que, num plano geral, a acumulação de factores objectivos materiais para a superação revolucionária do capitalismo coloca a necessidade de avanços significativos na capacidade de organização dos comunistas, da sua intervenção, da sua ligação às massas e da sua decidida ofensiva na luta das ideias.


Para responder a tais exigências é necessário partir da realidade em que intervimos, ter em conta as especificidades nacionais, a nossa realidade económica e social, a nossa história, a nossa experiência, a nossa cultura e a correlação de forças existente. A vida encarregou-se de demonstrar que o marco nacional de luta é o espaço fundamental da luta de classes, assim como se encarregou de demonstrar que o papel e a criatividade das massas em movimento, com a afirmação de uma força de vanguarda (como o é o PCP) que assuma a ruptura com o capitalismo e projecte o socialismo como alternativa, são elementos fundamentais para a construção de uma real alternativa política.

Causas internas, externas e a ofensiva das classes dominantes


Para a definição dessa alternativa é necessário ter uma noção clara das reais causas da situação que vivemos, as internas, as externas e o modo como se relacionam entre si.


A vida está a mostrar que as causas «domésticas» de uma das maiores crises económicas e sociais na História de Portugal não radicam num qualquer erro de gestão deste ou daquele governo em concreto, ou duma política em particular. Radicam isso sim nos 36 anos de política de direita praticada pelo PS, PSD e CDS, articulados com a associação de Portugal ao processo de integração capitalista na Europa. Políticas que perseguiram até hoje todas um mesmo objectivo: a contra-revolução, a recuperação monopolista, a destruição das conquistas de Abril, o ataque ao regime democrático saído da revolução e à Constituição que o enquadra, e uma crescente submissão às estruturas do imperialismo.


Um sistema de políticas que teve como consequências o aumento das desigualdades e da exploração dos trabalhadores e do povo, a destruição de grande parte do nosso aparelho produtivo nacional, o estrangulamento da nossa economia, o endividamento do país e a sua crescente dependência. É aqui que residem os problemas do país e não num qualquer chavão hipócrita e criminoso do ponto de vista social de que «vivemos acima das nossas possibilidades» ou numa mentirosa constatação da inevitabilidade do empobrecimento do povo e da submissão do país ao garrote da dívida externa e aos ditames da União Europeia (UE), do FMI e do imperialismo em geral.


A política de direita, sendo a expressão concreta da ofensiva da classe dominante contra os trabalhadores e o povo português (e simultaneamente uma das causas centrais da actual situação), está interligada e relaciona-se com outros factores que podemos, de forma simplificada, apelidar de «externos». Isto porque é sua expressão e interliga-se com eles. Porque nasce dos mesmos interesses de classe, assenta na defesa e imposição do mesmo sistema de exploração e opressão – o capitalismo.


Isso foi e continua a ser particularmente visível na coincidência de posições dos partidos da política de direita (PSD, CDS e PS) com as posições da UE e do FMI relativamente à crise do capitalismo e em especial à crise na e da UE. Coincidência de posições que não surpreende se tivermos em conta a coincidente defesa do mesmo sistema e portanto dos seus instrumentos. Sendo a UE um deles, e a crise na e da UE uma expressão no continente europeu da crise do capitalismo, não admira então que, com mais ou menos rótulos hipócritas (como o do «crescimento e emprego» que a social-democracia resolveu colar ao «Tratado Orçamental»), com mais ou menos retóricas e falsos distanciamentos, com maiores ou menores variantes do modelo de federalismo que querem impor aos povos, todos tenham convergido em momentos como Maastricht, a imposição do Tratado de Lisboa, o conluio do Pacto de Agressão das troikas contra o povo português, e convirjam agora naquilo que para eles é essencial: salvar a UE e seus principais instrumentos, entre os quais a União Económica e Monetária (o Euro), à custa de uma profunda regressão civilizacional no continente europeu.


Ou seja, do ponto de vista de classe não existem propriamente causas «externas» e «internas», existem sim expressões externas e internas de uma mesma ofensiva de classe que ataca direitos sociais e laborais, democracia e soberania.


É por isso fundamental, num quadro de grande instabilidade, incerteza e insegurança, integrar a análise da situação nacional numa análise mais geral sobre a situação internacional. Tal como é fundamental integrar a construção da alternativa patriótica e de esquerda, da democracia avançada, e o objectivo da construção de uma sociedade socialista no nosso país, na luta mais geral dos povos pela sua emancipação social.

A crise do capitalismo e a rearrumação de forças no plano internacional


A evolução da situação internacional é marcada pelo rápido e violento aprofundamento da crise estrutural do capitalismo. Tal tendência, que resulta da natureza, funcionamento e contradições do capitalismo, manifesta-se de várias formas: no plano ecológico – em que a realidade demonstra cada vez mais a insustentabilidade de um sistema socioeconómico assente na busca do lucro máximo e num conceito de crescimento económico desligado e em contradição com as necessidades de preservação das condições naturais para a sobrevivência da espécie; no plano alimentar – como o demonstram as cada vez mais pronunciadas quebras de aprovisionamento de produtos alimentares, o aumento dos preços dos alimentos e as crises alimentares sucessivas, com particular incidência desde 2008, que empurram dezenas de milhões de pessoas para a pobreza e a fome e que já colocam 2/3 dos países africanos em risco de crise alimentar; no plano energético e do mercado de matérias-primas – com sucessivos choques petrolíferos, diminuições drásticas do consumo energético e aumentos exponenciais dos preços dos combustíveis fósseis; e finalmente no plano económico – como é por demais evidente na crise da economia capitalista com a magnitude e violência social que conhecemos bem no nosso país.


Trata-se de uma crise que não resulta de qualquer «erro de gestão», ou da «ganância excessiva» deste ou daquele sector do grande capital. A actual crise é uma das mais agudas crises cíclicas de sobreprodução relativa da história do capitalismo. Uma crise que resulta das contradições do sistema capitalista – nomeadamente da contradição fundamental entre o carácter social da produção e a sua apropriação privada –, que vem confirmar mais uma vez uma das teses fundamentais do marxismo sobre o funcionamento da economia capitalista – a lei da baixa tendencial da taxa de lucro, e que vem acentuar a tendência do capitalismo para a estagnação, demonstrando o seu carácter parasitário e decadente e colocando, ainda com mais veemência, a necessidade da substituição do capitalismo por outra formação socioeconómica – o socialismo.


Duas décadas passadas sobre as derrotas do socialismo e os discursos do capitalismo triunfalista, o capitalismo, livre do «contrapeso» dos países socialistas e de tudo o que representaram para o Mundo, não só não consegue lidar com as suas contradições, como conduz a humanidade a um retrocesso civilizacional, assente na regressão ao século XIX das condições de vida, de trabalho e de exploração da imensa maioria da população mundial.


Se as crises de sobreprodução relativa do capitalismo são cíclicas, já o não é o aumento da exploração. É que, contrariamente às teorias da social-democracia e mesmo de algumas forças ditas de «esquerda», as bases para a guerra social que está a ser desencadeada contra os trabalhadores e os povos não surgiram apenas em 2007. Não! Foram construídas ao longo dos anos, provando que o capitalismo sustenta os seus períodos de crescimento no aumento da exploração dos trabalhadores e dos povos, para depois, em períodos de crise resultantes da sua própria natureza, elevar ainda mais o grau de exploração numa espiral de devastação social e concentração de riqueza.


Mas dito o mais importante, importa realçar ainda que esta crise se distingue de outras crises cíclicas. Desde logo porque ocorre num período de profunda internacionalização e financeirização da economia capitalista, com um alto grau de mobilidade do capital e concentração e centralização de riqueza, o que faz com que, tendo tido a sua primeira expressão na economia norte-americana por esvaziamento da bolha especulativa imobiliária (tal como o PCP previu há muitos anos), esta crise se tenha estendido rapidamente a todo o globo, afectando hoje não só os principais centros do capitalismo (UE, EUA e Japão) mas de forma geral todas as economias (nomeadamente as emergentes) e se tenha expressado também como uma crise de sobre-acumulação decorrente da sobreprodução e da gigantesca hipertrofia da esfera financeira da economia capitalista.


Mas esta não é a única razão que leva a que esta crise se diferencie, na sua expressão (e não na sua natureza) de outras. É que ela ocorre num quadro de importantes mutações nas relações internacionais. Por um lado, são hoje particularmente visíveis as expressões do desenvolvimento desigual do capitalismo: o declínio económico relativo das principais potências capitalistas mundiais (com destaque para os EUA); a afirmação e desenvolvimento de países capitalistas com ambições de potência regional e que, crescentemente, se confrontam com os interesses do centro imperialista e o aprofundamento das contradições entre diferentes potências imperialistas. Por outro, a emergência de novas potências económicas como a China, as articulações de nações (entre as quais vários países capitalistas) fora do quadro do domínio hegemónico dos EUA e de outras grandes potências imperialistas e o fortalecimento de processos de afirmação soberana e progressista como na América Latina.


Estes desenvolvimentos configuram um complexo processo de rearrumação de forças na arena internacional, que, no quadro de uma profunda crise do sistema e do aprofundamento da contradição entre o centro capitalista e a periferia do sistema, será determinante para ulteriores desenvolvimentos da situação internacional.

A crise na e da União Europeia


A crise na UE é hoje uma das expressões deste complexo processo. É, em particular, uma expressão muito concreta do aprofundamento das contradições inter-imperialistas. A sua crise – que tem génese na sua própria natureza de classe – foi fortemente acelerada em virtude das contradições entre os EUA e outras potências capitalistas como a Alemanha e a França, nomeadamente no plano monetário. Mas este facto não significa que a UE seja um qualquer contraponto ao imperialismo norte-americano. É exactamente o contrário! A forma como a UE reage à crise do capitalismo veio revelar ainda mais claramente a sua natureza de classe, dando razão aqueles que, como o PCP, alertaram para o facto de que o objectivo central do processo de integração capitalista era a criação de um bloco imperialista, que, articulando-se com o imperialismo norte-americano na estratégia de exploração, opressão, concentração e centralização da riqueza e de agressão a outros povos do Mundo, concorre com ele no campo económico, monetário e de esferas de influência.


Esta realidade coloca a ruptura com o processo de integração capitalista europeu como um dos mais importantes elementos da luta dos povos da Europa contra a ofensiva do grande capital e do imperialismo.

Uma multifacetada e brutal ofensiva do imperialismo


O aprofundamento da crise estrutural do capitalismo está a ser acompanhado por uma profunda e multifacetada ofensiva do imperialismo. A incapacidade das classes dominantes de darem resposta à crise do capitalismo dentro dos limites do «normal» funcionamento do sistema coloca grandes e renovados perigos para os trabalhadores e os povos e mesmo para a Humanidade. A solução «clássica» de destruição de forças produtivas e de empobrecimento generalizado da população está a ser levada aos seus limites, provocando, como é bem patente no nosso país, autênticas situações de guerra social com consequências devastadoras. Mas o desenvolvimento das forças produtivas é tal, a teia de contradições do sistema é tão densa, e é tão grande a dimensão das sucessivas «bolhas» resultantes da financeirização da economia e da especulação financeira que as medidas que visam uma saída desta crise, por via do aumento brutal da exploração e de um ajuste de contas com as conquistas da luta dos trabalhadores e dos povos ao longo do século XX, apenas estão a ter como resultado o ainda maior aprofundamento da crise.


As classes dominantes, nomeadamente nas principais potências imperialistas, sabem-no e recorrem a todos os meios ao seu alcance para contrariar esta tendência. Os processos de esmagamento da soberania dos povos, de reconfiguração dos Estados para melhor servir o capital, de concentração do poder económico e político nos grandes monopólios e nas instituições supranacionais do capitalismo, de ataque cada vez mais cerrado à democracia e aos direitos democráticos, cívicos e de participação, de adopção de políticas que abrem campo ao fascismo, são alguns dos elementos desta poderosa ofensiva.


Tudo isto, a par de um dos traços mais preocupantes da actual situação: uma ofensiva recolonizadora do imperialismo, quer no plano económico, quer político e geoestratégico – assente numa renovada e intensa ofensiva militarista do imperialismo, como o demonstra bem a profusão de focos de conflito desde o Magrebe até ao Extremo Oriente e que tem nos dias de hoje uma expressão explosiva no Médio Oriente, com a guerra já em curso contra a Síria e as crescentes ameaças contra o Irão. Agressões que, a aprofundarem-se, e a concretizarem-se, poderão ter como consequência uma generalização de conflitos no plano internacional de consequências imprevisíveis, fazendo assim realçar a importância central da luta pela paz e da solidariedade com os povos em luta contra o imperialismo.

A luta é a resposta e o caminho. O socialismo, a direcção e objectivo


A resultante dos processos acima descritos – crise do capitalismo, ofensiva do imperialismo e rearrumação de forças na arena internacional – é, num contexto de grande volatilidade, ainda indefinida. Ela dependerá de vários factores. Desde logo, do desenvolvimento da luta dos trabalhadores e dos povos – que se intensifica em quase todo o globo – e da correlação de forças que dela decorra. Mas também do papel na arena internacional de diversos países. Seja dos países que estabelecem como orientação e objectivo a construção do socialismo – importantes realidades que, independentemente de dúvidas, interrogações e inquietações (algumas de fundo) que possam suscitar aos comunistas portugueses as suas realidades, continuam a ser objectivamente um factor de contenção do imperialismo; seja dos países capitalistas, onde a luta de massas adquire hoje uma importância e dimensão muito grande e onde o papel do movimento sindical de classe e dos partidos comunistas será fundamental para levar mais longe a luta, torná-la mais consequente e alterar a correlação de forças no «centro» do sistema; seja dos países que desenvolvem alternativas progressistas e de afirmação soberana – como na América Latina – e que se afirmam hoje como um dos principais fulcros da resistência anti-imperialista com Cuba e Venezuela na linha da frente.


A incerteza é, como já dissemos, um dos traços da actualidade. Grandes perigos coexistem com reais potencialidades de transformação progressista e revolucionária. O capitalismo está mergulhado numa profundíssima crise. As suas contradições estão esventradas e isso realça a necessidade e a urgência do socialismo e a actualidade do ideal comunista. Mas não há soluções nem imediatas, nem mágicas. Será o desenvolvimento da luta dos povos e a capacidade dos comunistas de nela reforçarem a sua influência política, ideológica e de massas que determinarão em última análise o ritmo do processo de emancipação social e da superação revolucionária do capitalismo.


O atraso relativo do factor subjectivo da luta coloca a necessidade de, em movimento, articular a luta contra a ofensiva do grande capital e por objectivos concretos e imediatos à luta por profundas transformações de natureza anti-monopolista e anti-imperialista e por uma sociedade socialista. É este o grande desafio que temos perante nós: resistir, avançar, travar a batalha das ideias e articular a luta por uma alternativa patriótica e de esquerda com o nosso projecto programático de Democracia Avançada, e afirmar o socialismo não apenas como direcção mas como objectivo necessário, possível e cada vez mais urgente, como o único modo de produção que poderá libertar as forças produtivas, colocá-las ao serviço do interesse da imensa maioria da população mundial e dar solução aos grandes problemas da Humanidade. Socialismo que será alcançado pela luta, pela acção dos partidos comunistas, e que, em cada país, corresponderá ao caminho que cada povo definir de forma soberana no desenvolvimento do processo histórico, pois como o afirma uma das várias, válidas e extremamente actuais lições que retirámos da análise das experiências históricas de construção do socialismo no século XX, é que não existem, nem podem existir, modelos de revolução ou de socialismo.


O reforço dos partidos comunistas, o aprofundamento da sua solidariedade e cooperação – e destes com outras forças progressista no quadro da frente anti-imperialista – assumem um carácter decisivo. Assim como o assume a rejeição de soluções quer de carácter reformista, quer voluntarista, por via da correcta definição das etapas e ritmos da luta revolucionária e das alianças que cada fase da luta exige e possibilita. Etapas que não concebemos como quaisquer segmentos de luta estáticos e rígidos, mas como elementos de um processo, que se interligam e interrelacionam entre si, que podem ser mais ou menos prolongadas. Um processo que sendo revolucionário, é naturalmente feito de avanços e recuos, vitórias e derrotas, e em que a acumulação de forças é o factor determinante para alcançarmos a «terra sem amos».


(Revista "O Militante", Nº 321 – Nov/Dez 2012)


Poesia | Bertolt Brecht - Perguntas de um Operário Letrado


Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Sò tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sózinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitòria.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas


terça-feira, 26 de março de 2013

Artigos de Opinião | Manuel Gusmão - Cultura e Ideologia (*)


Quando Marx, em O Capital, analisa o processo de trabalho, «antes de mais, independentemente de qualquer forma social determinada», mas já supondo uma forma que pertence exclusivamente ao homem, considera como momentos simples e abstractos desse processo «a actividade conforme o objectivo, ou o próprio trabalho, o seu objecto e o seu meio. Estes três momentos entram em relações de interdependência e o processo é basicamente o de uma múltipla transformação – o objecto de trabalho é transformado num outro objecto, o produto. O processo, repetindo-se, pode vir a transformar-se pela descoberta e incorporação de novos meios e instrumentos e, finalmente, o trabalhador torna-se em acto naquilo que apenas era em potência – «força de trabalho actuante, operário».


Este é um modelo antropológico de longo alcance na compreensão do trabalho humano, que podemos ver concretizar-se em diferentíssimos tipos de actividade. Concebido para descrever a produção material, não só se revelará operativo para descrever a produção de ideias, representações e valores, no que ela tem de específico, mas para compreendermos que essa especificidade não apaga nela a existência de processos materiais de produção e a sua implicação de meios imateriais, de objectos ideais e de produtos espirituais.


Por isso, quando nos referimos à cultura como um conjunto de actividades ou práticas, que usam meios e instrumentos de produção, circulação e recepção, para produzir artefactos ou obras, que transportam consigo representações e valores, e através das quais os indivíduos, os grupos sociais e as sociedades procuram dar sentido à vida e ao mundo, estamos a verificar a operatividade do modelo construído por Marx, a dar conta do nosso património teórico, e a assimilar o que tem sido a reflexão experimentada ou a experiência reflectida e elaborada pelo nosso próprio Partido no campo da cultura.


Quando não nos limitamos a aplicar a noção de cultura aos artefactos ou obras nem às representações e valores que, nelas e através delas, se comunicam nós estamos a fazer várias coisas ao mesmo tempo:


  1. Estamos a dar conta de que as obras da cultura, os produtos culturais não caem do céu, não são a «coisa» de uma inteligência ou de uma sensibilidade, separadas das outras faculdades humanas, nem em absoluto independentes da produção e reprodução social da vida.
  1. A tornar claro porque é que as ideias dominantes são as das classes dominantes: porque é dominante a sua posição na esfera económica e disso faz parte a maneira como se apropriam dos principais aparelhos e instituições, meios e instrumentos de produção, difusão e recepção culturais.
  1. Estamos a preparar o caminho para a compreensão de que a democratização cultural não se pode nem deve esgotar na democratização do acesso à fruição cultural, antes tem de estender-se ao acesso à criação, o que implica a democratização das actividades e do uso desses meios e instrumentos. Por isso, também, quando intervimos culturalmente a partir do movimento associativo ou das autarquias ou, mais tarde ao mais cedo, a partir do poder de Estado, a nossa intervenção na democracia cultural, tem como orientação estratégica: a participação na criação cultural das populações, com os colectivos e os criadores individuais.
O universo da cultura diferencia-se técnica e disciplinarmente em várias regiões de fronteiras difusas, e também elas internamente diferenciadas: as artes e as ciências, a filosofia, o direito, a religião, a moral, a educação e o ensino, a comunicação social.


A cultura no sentido amplo em que a entendemos aproxima-se, então, do que Marx designou como «consciência social» e como «ideologia». Mas há diversamente, nas ciências e nas artes, ou mesmo na filosofia, algo que não é totalmente subsumível por essas noções, algo que determina a especificidade dessas actividades. Não se trata de comprometer o poder explicativo e interpretativo do materialismo que estuda as categorias da consciência social, entrelaçadas com as estruturações do ser social. Mas é necessário dialectizar plenamente as relações que permitem atribuir ao ser social o primado sobre as representações da consciência social, sem entretanto cairmos em qualquer forma de dualismo. A própria admissão da possibilidade do conhecimento científico ser um conhecimento efectivo do mundo e da vida implica que nem toda a consciência social seja uma falsa consciência.


Por outro lado, no que ao nosso tema mais interessa, as artes correspondem ao que Marx em 1844 considerava, como também especificamente humano – é que o homem sabe aplicar em toda a parte a medida inerente ao objecto, por isso, o homem dá forma também segundo as leis da beleza. Por isso, Marx considerava que é a música que desperta o sentido musical do homem. E continuava: Não só os 5 sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, apenas advêm pela existência do seu objecto, pela natureza humanizada.


A formação dos 5 sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje.


As diferentes regiões da cultura  são diversamente determinadas pela sociedade na qual se processam e mesmo que em alguns casos, em última instância, pelas formas económicas em que os homens produzem, consomem e trocam. Nesse sentido, os seus meios e objectos de trabalho, bem como os seus produtos são tão transitórios e históricos como as relações sociais que exprimem. Entretanto Marx e Engels insistiram na margem, maior ou menor, de autonomia relativa das diferentes regiões da consciência social ou da ideologia. Essa autonomia é diferente consoante a especificidade técnica da região, a sua maior ou menor distância em relação ao mundo da produção económica. Assim, a política e o direito estão, tendencialmente, mais perto da expressão das relações económicas e sociais, do que a filosofia ou a religião. A autonomia relativa advém do peso da história das formas herdadas, no trabalho criador de uma dada esfera cultural, do tipo e profundidade das mediações à qual é submetida a determinação económica. Certas representações e valores mantêm-se muitas vezes como sobrevivências, quando desapareceram já as condições materiais, que lhes deram origem e a que corresponderam.


Esta sobrevivência é negativa quando exprime a obstinação de certos preconceitos conservadores e elitistas em situações que esperaríamos terem-nos erradicado. Mas, por exemplo, a sobrevivência de certas obras de arte às condições da sua produção testemunha do carácter transhistórico do trabalho concreto que as produziu e de uma certa perenidade das formas de criação segundo a beleza. Embora as ideias de beleza sejam seguramente transitórias e históricas.


A autonomia relativa da cultura manifesta-se e é legível na contradição entre uma determinada relação de forças numa determinada zona cultural e as condições criadas do ponto de vista económico, político e social, ou na possibilidade da retroacção de uma dada esfera da cultura sobre as suas condições materiais, apressando ou retardando o processo da sua evolução.


No relatório da actividade do Comité Central ao VI Congresso do PCP, o camarada Álvaro Cunhal observava: Pelo suborno, pela ameaça, pelas perseguições, pelo encerramento de instituições culturais, pela guerra à ciência, à literatura, ao cinema, às artes plásticas e a todas as manifestações culturais, pelo pagamento a peso de oiro da inteligência venal, a ditadura procurou criar um «escol» intelectual fascista e aniquilar o movimento progressivo dos intelectuais. Não o conseguiu. E concluía: Por muito surpreendente que pareça/ sob uma ditadura fascista, as ideias da democracia e do progresso dominam o panorama intelectual português.


É esta autonomia relativa, enquanto possibilidade de contradição e retroacção da cultura, que fundamenta a importância que atribuímos à democracia cultural no quadro da luta pela democracia avançada e pelo socialismo. É esta autonomia relativa, enquanto garantia da cultura como manifestação de liberdade e de transformação, enquanto condição de possibilidade e trabalho de emancipação, que é hoje crescentemente comprimida e reduzida em Portugal e no mundo do capitalismo e do imperialismo.


No mundo contemporâneo a cultura é crescentemente atravessada pela economia e pelas relações económicas do imperialismo. A sua política «cultural», sob a capa muito neoliberal de não haver nenhuma, joga-se efectivamente em torno de duas reduções da autonomia relativa da cultura: a sua redução a um sector da produção para um mercado e à gestão de um espectáculo, em qualquer dos casos acumulando o lucro, em termos económicos e ideológicos. O papel destrutivo do capitalismo dá-se aqui a conhecer enquanto mercadorização e alienação. Mercadorização de todas as relações sociais e humanas, privatização e mercadorização do ser social, e não só já da terra, enquanto primeiro objecto e meio de trabalho dos humanos, mas enquanto nosso corpo não-orgânico, e das águas no planeta. Alienação, quando tudo o que há de íntimo ou público, da vida pessoal à acção política, nos é expropriado, exposto perante nós, transformado em espectáculo, que nos impõe a posição de espectadores.


E contudo, ela move-se. Continua a mover-se. Há um artista plástico que cerziu a sua experiência de viagens suburbanas num conjunto de pequenas narrativas e grafismos e estuda agora as possibilidades de as expor em troços do percurso rodoviário e ferroviário que ele conheceu. Há um conjunto de jovens que se reúne para montar uma peça e, se der, depois outra, primeiro uma coisa do Redol, depois outra de Shakespeare, ou vice-versa. Há um homem que foi operário e agora escreve as imagens do trabalho como pequenos gestos da luz. Há aquela comissão que organizou a ida de um grupo musical à sua colectividade e preparou ao mesmo tempo a ida a essa sessão de um grupo de jovens que virão mais tarde a formar um outro grupo musical. Há aqueles avós que vão, eles e elas, à biblioteca municipal contar histórias e ensinar gestos das artes de fazer, à geração dos seus netos. Há aqueles dois miúdos, um negro africano e um branco que, numa festa do município, cantam uma música rap, com uma letra que eles fizeram e fala de violência e amizade. Há a secção de cinema de uma associação de estudantes que organiza uma pequena mostra de cinema independente e, ao mesmo tempo, abre um atelier de vídeo e um concurso em que apoia a produção de curtas-metragens vídeo entre os seus associados. Há aquela jovem investigadora científica que prepara a sua tese  e, para além da sua vida pessoal, inventa tempo para integrar a Associação dos bolseiros de investigação científica e lutar por uma política democrática para a ciência. Há aquela animadora cultural de uma autarquia que cria com grupos de jovens e alguns escritores uma espécie de atelier de escrita em que todos escrevem e discutem o que uns e outros escreveram. Há aquela professora de educação visual que estimula entre os seus alunos, a realização de projectos multimedia.


E há outros, muitos mais, como estes e diferentes destes. E, há o PCP que, com eles e muito para além deles, sendo o partido político do proletariado, o partido da classe operária e de todos os trabalhadores portugueses, é também, pela sua história passada e presente, uma organização sócio-cultural sem paralelo no nosso país. Uma organização que, enquanto tal, produz, recebe e põe em comum a cultura que é diversa, inesperada e comum. Um partido que resiste e organiza a resistência também no plano da cultura, porque a resistência e a esperança são hoje o cultivo do futuro.


E porque essa cultura é necessária, é necessário que a Greve Geral de 30 de Maio seja um êxito dos trabalhadores portugueses. Um êxito da liberdade contra uma cultura da arrogância anti-operária, antipopular e antidemocrática; uma vitória do Trabalho contra uma cultura de destruição do aparelho produtivo e dos direitos dos portugueses; uma vitória da fraternidade e da solidariedade, contra uma cultura do salve-se quem puder, da intimidação e da criminalização do protesto e da luta.


(*) Intervenção no Encontro Nacional do PCP sobre Cultura, em 26 de Maio de 2007.


(Revista "O Militante", Nº 290 - Set/Out 2007)