terça-feira, 30 de abril de 2013

Artigos de Opinião | Grover Furr - Stalin e a Luta pela Reforma Democrática (I)




Introdução

1. Este artigo sublinha as tentativas de Stalin, desde os anos 30 até à sua morte, de democratizar o governo da União Soviética.



2. Esta afirmação, e o artigo, surpreenderá muitos, e escandalizará alguns. De facto, fiquei surpreso perante os resultados desta investigação, o que me levou a escrever este artigo. Suspeitei durante muito tempo que a versão típica da "guerra fria" da história soviética tinha importantes lacunas. Apesar disso, não estava preparado para a magnitude das falsificações de que tive conhecimento.


3. Esta história é bem conhecida pelos russos, onde o respeito e também a admiração por Stálin é comum. Yuri Zhukov, o principal historiador russo que avançou com o paradigma de "Stalin democrata", e cujos trabalhos são a principal fonte individual, mas não a única, deste artigo, é uma figura reconhecida, relacionada com a Academia de Ciências. Os seus trabalhos são amplamente conhecidos.


4. Porém, esta história, assim como os feitos nos quais assenta, é virtualmente desconhecida fora de Rússia, onde o paradigma da Guerra Fria "Stalin, o terrível" domina tanto a bibliografia que os trabalhos aqui citados são referidos muito raramente. Por isso, muitas das fontes utilizadas no artigo só são acessíveis em russo.



5. Este artigo não só informa os leitores de novos factos e das suas interpretações sobre a história da URSS. Constitui uma tentativa de fazer chegar aos leitores não-russos o resultado de novas investigações, baseadas nos arquivos soviéticos, sobre o período de Stalin e sobre o próprio Stalin. Os feitos discutidos neste artigo são compatíveis com uma determinada linha de paradigmas históricos soviéticos, na medida em que ajudam a desmistificar um determinado número de interpretações. Serão inaceitáveis por completo (inclusive escandalosos) para aqueles cujas perspectivas políticas e históricas se baseiam em certas noções erradas, baseadas na Guerra Fria, sobre o "totalitarismo" soviético e o "terror" stalinista.



6. A interpretação khrucheviana de Stalin como um ser sedento de poder, traidor do legado de Lenin, foi uma criação necessária para os interesses da nomenclatura do Partido Comunista nos anos 50. No entanto, apresenta muitas semelhanças e compartilha muitas premissas com o discurso canónico sobre Stalin herdado da Guerra Fria, que esteve ao serviço do desejo das elites capitalistas de apresentar as lutas pelo comunismo, ou qualquer luta da classe operária pelo poder, como um caminho que dirige necessariamente a algum tipo de horror.



7. Ajusta-se também à necessidade do trotskismo de argumentar que a derrota de Trotsky, o "revolucionário autêntico", teve que ser obra de um ditador que é dado como certo que violou cada um dos princípios pelos que lutou a Revolução. Khruchevistas, anti-comunistas da Guerra Fria, e os paradigmas trotskistas sobre a história soviética são iguais na sua dependência de uma demonização de Stalin, de sua liderança e da URSS durante o seu mandato.



8. A visão sobre Stalin apresentada neste ensaio é compatível com outros paradigmas históricos contraditórios. As interpretações comunistas anti-revisionistas e pós-maoístas da história soviética contemplam Stalin como um herdeiro lógico e criativo do legado de Lenin, se bem que fracassado em certos aspectos. Igualmente muitos nacionalistas russos, que difícilmente aprovariam os enganos de Stalin enquanto comunista, respeitam a sua figura como responsável por fazer da Rússia uma potência industrial e militar. Stalin é para todos eles uma figura essencial, se bem que a partir de uma óptica diferente.


9. Este trabalho não tenta "reabilitar" Stalin. Estou de acordo com Yri Zhukov quando escreve: 

"Tenho que dizer, sinceramente, que me oponho à reabilitação de Stalin, porque me oponho ás reabilitações em geral. Nada nem ninguém deve ser reabilitado, devemos, apenas, descobrir a verdade e dá-la a conhecer. Porém, desde os tempos de Khruchev que as únicas vítimas das repressões de Stalin que ouvimos falar, são aquelas que tomaram parte nelas, ou que as facilitaram, e que não se opuseram a elas". 


Tão pouco quero afirmar que, caso Stalin tivesse conseguido atingir todas as metas, estariam resolvidos os muitos e variados problemas da construção do socialismo e do comunismo.



10. Durante o período analisado neste ensaio, a liderança de Stalin preocupou-se não só em potencializar a democracia no governo do estado, mas também, em favorecer a democracia interna no Partido. Este ponto, importante e relacionado, precisa de um estudo em separado, e não é o ponto central deste trabalho. Apesar de ser conhecido o conceito de "democracia", este tem um significado distinto no contexto de um partido guiado pelo centralismo democrático, formado por membros voluntários, que no contexto de um grande estado de cidadãos, não se podem dar por supostas bases de consenso político.



11. Este artigo baseou-se em fontes de primeira mão sempre que foi possível. Ainda que se baseie com maior fundamento nos trabalhos académicos de historiadores russos que têm acesso a documentos não publicados, ou de mais recente publicação, dos arquivos soviéticos. Muitos documentos soviéticos de grande importância só estão à disposição de académicos com acesso privilegiado. Muitos outros permanecem completamente sequestrados e "classificados", incluídos muitos do arquivo pessoal de Stalin, os materiais da condenação e de investigação dos processos de Moscovo de 1936-1938, os materiais de investigação sobre o caso Tukhachevski de 1937 e muitos outros.



12. Yuri Zhukov descreve a situação dos arquivos da seguinte forma:



"Com o começo da Perestroika, sendo um dos seus lemas a glasnost...o arquivo do Kremlin, antes aberto aos investigadores, foi fechado. Os seus conteúdos começaram a trasladar-se (para vários arquivos públicos G.F.). Este processo começou, mas não chegou a ser concluído. Sem publicidade ou explicação, em 1996 os materiais mais importantes e essenciais foram reclassificados e arquivados no arquivo do Presidente da Federação Russa. Foram prontamente evidentes as razões desta operação: permitir o ressurgimento dos velhos e lamentáveis mitos."



Zhukov refere-se aos mitos "Stalin o terrível" e "Stalin o grande líder". Só o primeiro destes mitos é familiar aos leitores da historiografia ocidental e anti-comunista. No entanto, as duas escolas estão bem representadas tanto na Rússia como na Comunidade de Estados Independentes.



13. Uma das obras de Zhukov, fonte de muito do contido neste artigo, intitula-se Inoy Stalin - Um Stalin diferente, "diferente" dos mitos, mais perto da verdade, baseado nos documentos de arquivo recentemente desclassificados. A capa do livro de Zhukov apresenta uma fotografia de Stalin e, frente a ela, a mesma fotografia em negativo: o seu oposto. Em poucas ocasiões Zhukov utiliza fontes de segunda mão. Na maior parte das vezes, ele cita documentos de arquivo não publicados, ou recentemente desclassificados e publicados. A sua descrição da política do Politburo de 1934 a 1938 é muito diferente de tudo o que tenha a ver com os mitos que ele rejeita.


14. Zhukov remata a sua introdução com as seguintes palavras:


"Não presumo ter terminado a tarefa. Tento só evitar pontos de vista pré-concebidos, evitar os dois mitos; tentar reconstruir o passado, uma vez muito conhecido, mas agora esquecido intencionalmente, deliberadamente não citado, ignorado por todos".

Assim como Zhukov, este artigo também tenta manter-se à margem dos dois mitos.

15. Sob estas condições qualquer conclusão tem que ter o carácter de tentativa. Esforcei-me por utilizar sensatamente todos os materiais, já foram de primeira ou segunda mão. Com a condição de não interromper o texto coloquei as fontes referenciais no final de cada parte.



16. A investigação que este artigo resume tem importantes consequências para aqueles de nós que queremos levar adiante uma análise de classe da história, incluindo a história da União Soviética.



17. Um dos melhores investigadores do período de Stalin na URSS, J. Arch Getty, denominou a investigação histórica realizada durante o período da Guerra Fria como "produto propagandístico", "investigação" que não merece nem crítica nem emenda, tem que ser feita de novo, desde o começo. A minha opinião coincide com a de Getty, ainda que acrescentaria que esta investigação tendenciosa, "política" e desonesta continua nos dias de hoje.



18. O paradigma Guerra Fria-Khruchevista foi o ponto de vista dominante da história dos "anos de Stalin". A presente investigação pode dar uma luz sobre a matéria, "um princípio desde o mesmo princípio". A verdade que surge terá também um grande significado para o projeto marxista de compreender o mundo para transformá-lo, da construção de uma sociedade sem classes, uma sociedade com justiça econômica e social.



19. Na secção final do ensaio sublinhei algumas áreas para uma posterior investigação, apontadas pelos resultados deste artigo.
Uma nova Constituição

20. A Dezembro de 1930, o VIII Congresso Extraordinário dos Sovietes aprovou o rascunho da nova constituição soviética. Convocou uma votação secreta e eleições abertas. (Zhukov, Inoy 307-9)



21. Admitiram-se candidatos não só do Partido Bolchevique - chamado então Partido Comunista da União (bolchevique) - mas também dois grupos de cidadãos baseados na zona de residência, filiação (como grupos religiosos), ou organizações dos centros de trabalho. Isto nunca foi levado à prática. Nunca houve eleições abertas.



22. Os aspectos democráticos da Constituição foram incluídos ante a expressa insistência de Stalin. Juntamente com os seus mais chegados colaboradores no Politburo do Partido Bolchevique, Stalin lutou para manter este projeto (Getty, "State"). Ele, e eles, cederam apenas quando enfrentaram a rejeição total do Comité Central do Partido, e ante o pânico que criou a descoberta de sérias conspirações para derrocar o governo soviético com a colaboração do fascismo alemão e japonês.



23. Em Janeiro de 1935, o Politburo indicou o trabalho de desenhar os conteúdos de uma nova constituição a Avel Ynukidze que, meses mais tarde, voltou com a ideia de eleições abertas. Quase imediatamente, a 25 de Janeiro de 1935, Stalin expressou o seu desacordo com a proposta de Yenukidze, insistindo nas eleições secretas (Zhukov,Inoy 116-21).



24. Stalin tornou público este desacordo de forma muito notória em Março de 1936, durante uma entrevista com o magnata da imprensa americana Roy Howard. Stalin declarou que todas as votações seriam secretas. O voto teria uma base de igualdade, tendo o mesmo valor o voto de um camponês que o voto de um operário; uma base territorial, como no Ocidente, assim como seria baseada no status, como na época czarista. O voto seria directo: todos os Sovietes serian eleitos pelos cidadãos, não por representantes indirectos. (Stalin-Howard Interview; Zhukov, "Repressii" 5-6).



Disse Stálin: "Adotaremos a nossa nova constituição provavelmente no final deste ano. A comissão encarregada de redigi-la está a trabalhar e finalizará em breve o seu trabalho. Como já se anunciou, de acordo com a nova constituição, o sufrágio será universal, igual, directo e secreto". (Entrevista Stalin-Howard)

25. E o mais importante: Stalin declarou que em todas as eleições participariam diferentes forças políticas:

"Você está confuso pela possibilidade de apenas um partido se apresentar ás eleições. E não compreende como pode ter lugar uma campanha eleitoral nestas condições. Evidentemente, os candidatos serão apresentados não só pelo Partido Comunista, mas também por toda classe de organizações públicas, alheias ao Partido. E temos centenas. Não temos partidos, na medida em que não temos uma classe capitalista em luta com uma classe trabalhadora que é explorada pelos capitalistas. A nossa sociedade consiste exclusivamente em trabalhadores livres do campo e da cidade; trabalhadores, camponeses e intelectuais. Cada um destes segmentos tem os seus especiais interesses, intereses expressos através das numerosas organizações que existem”.

Diferentes organizações cidadãs apresentariam candidatos que competiriam com os candidatos do Partido Comunista. Stalin declarou a Howard que os cidadãos marcariam os nomes de todos os candidatos ou assinalariam aqueles em quem votassem.

26. Também salientou a importância de eleições nas quais a competência surgiria como forma de lutar contra a burocracia:

"Você pode pensar que não haverá eleições. Mas, sim, haverão e vejo campanhas muito agitadas. Não são poucas as instituições no nosso país que funcionam mal. Dão-se casos em que este ou aquele governo local não são quem deveria satisfazer esta ou aquela das variadas e crescentes necessidades dos trabalhadores da cidade e do campo. Edificou-se uma boa escola ou não? Melhoraram as condições de vida? Você é um burocrata? Ajudou você a tornar mais eficaz o nosso trabalho e as nossas vidas mais civilizadas? Assim serão os critérios com que milhões de eleitores medirão as propostas dos candidatos, rejeitarão os não aptos, suprimirão os seus nomes das listas de candidatos e favorecerão e elegerão os melhores. Sim, as campanhas eleitorais serão disputadas, e estarão centradas em numerosos e agudos problemas, sobretudo de natureza prática, de primeira importância para o povo. O nosso novo sistema eleitoral reforçará todas as instituições e organizações, que serão obrigadas a melhorar o seu trabalho. O sufrágio universal, igualitário, directo e secreto será uma arma nas mãos do povo contra os órgãos governamentais que funcionem mal. Na minha opinião, a nova constituição soviética será a constituição mais democrática do mundo".



27. A partir deste ponto de vista, Stalin e os membros do Politburo mais próximos dele, Vyacheslav Molotov e Andrei Zhdanov, apoiaram as eleições abertas e secretas em todos os debates dentro do Partido. (Zhukov, Inoy, 207-10; Entrevista Stalin-Howard)



28. Stalin também insiste no facto de que muitos cidadãos soviéticos, que foram privados dos seus direitos, agora os recuperariam. Isto incluía membros das classes exploradoras, como os grandes proprietários, e aqueles que lutaram contra os bolcheviques durante a Guerra civil de 1918-1921, mais conhecidos como "guardas brancos", assim como aqueles condenados por crimes (como hoje nos USA). Os grupos mais importantes e provavelmente mais numerosos entre os lishentsy (expropriados) foram dois: os kulaks, os principais visados durante a colectivização, e os que violaram a "lei dos três ouvidos" (roubar propriedades estatais, assim como cereais, às vezes simplesmente para combater a fome). (Zhukov, Inoy 187)



29. Estas reformas eleitorais seriam desnecessárias, a não ser que a direcção soviética quisesse mudar a forma de governo da União Soviética. O que perseguiam era expulsar o Partido Comunista da direcção directa da União Soviética.



30. Durante a Revolução Russa e os críticos anos que se seguiram, a URSS foi governada por uma hierarquia eleita de sovietes, desde o nível local ao nacional, com os Sovietes Supremos como órgãos legislativos, o Conselho de Comissários do Povo, como o poder executivo, e o Secretário deste Conselho como primeira figura do Estado. Mas na prática, em todos os níveis, a eleição destes estava nas mãos do Partido Bolchevique. Houve eleições, mas a nomeação directa por parte dos líderes do Partido, denominada "cooptação" era também habitual. Inclusive as eleições foram controladas pelo Partido, já que ninguém podia candidatar-se sem a aprovação dos seus dirigentes.



31. Para os bolcheviques isto era lógico. Era a forma que tornava a ditadura do proletariado nas condições históricas específicas da União Soviética revolucionária e pós-revolucionária. Sob a Nova Política Económica, ou NEP, o trabalho e as capacidades dos exploradores foram necessárias. Ainda que só quando estivessem ao serviço da ditadura do proletariado, do socialismo. Não se deixou que reconstruíssem as relações capitalistas além de certos limites, nem que recuperassem poder político.



32. Durante os anos 20 e princípios dos 30, o Partido Bolchevique recrutou membros entre a classe trabalhadora de forma intensa. No final dos anos 20, a maioria dos membros do Partido eram trabalhadores e uma alta percentagem dos trabalhadores estava no Partido. Este recrutamento massivo e os grandes projectos de educação política coincidiram com as enormes tensões do primeiro Plano Quinquenal, a industrialização com marchas forçadas, e a colectivização, normalmente forçada, das propriedades individuais (passando a constituir fazendas colectivas – kolkhoz -, ou soviéticas - sovkhoz). A direcção bolchevique foi tão sincera na sua tentativa de proletarizar o Partido como bem sucedida nos seus resultados. (Rigby, 167-8;184;199)



33. Stalin e os seus seguidores dentro do Politburo deram determinados motivos para apoiar a sua vontade de democratizar a União Soviética. Essas razões reforçaram a ideia dessa direcção de que começara um novo estágio do socialismo.



34. A maior parte dos camponeses estava em propriedades colectivas. Com a progressiva diminuição de propriedades individuais, a direcção soviética pensou que, objectivamente, os camponeses já não constituíam uma classe sócio-económica independente. As semelhanças entre camponeses e trabalhadores eram maiores que as diferenças.



35. Stalin argumentava que, com o rápido crescimento da indústria colectiva e, sobretudo, com a classe operária a controlar o poder político através do Partido Bolchevique, o termo "proletário" já não era apropriado. "Proletariado", declarou Stalin, define a classe trabalhadora sob a exploração capitalista, ou trabalhando sobre relações capitalistas de produção, como as que existiam durante os primeiros anos da União Soviética, especialmente durante a NEP. Mas uma vez abolida a exploração directa dos trabalhadores pelos capitalistas, a classe trabalhadora não deveria ser chamada de "proletariado".



36. Segundo essa análise, os exploradores do trabalho alheio já não existiam. Os trabalhadores, que agora dirigiam o país no seu próprio interesse através do Partido Bolchevique, já não eram o clássico proletariado. Então, a "ditadura do proletariado" já não era um conceito pertinente. Essas novas condições supunham um novo tipo de estado. (Zhukov, Inoy, 231;292; Stalin, "Draft" 800-1).



A Luta contra a burocracia



37. Os líderes do Partido também estavam preocupados com o papel do Partido neste novo estágio do socialismo. Stalin enfrentou a luta contra o "burocratismo" já desde Janeiro de 1934, no seu relatório ao XVII Congresso do Partido. Stalin, Molotov e outros dirigentes denominaram o novo sistema eleitoral como "arma contra a burocratização".



38. Os líderes do Partido controlavam o governo, tanto decidindo quem entrava nos Sovietes como exercendo diversas formas de fiscalização sobre eles. Molotov, dirigindo-se ao VII Congresso dos Sovietes, o 6 de Fevereiro de 1935, afirmou que as eleições secretas "golpearão com grande força os elementos burocráticos, propiciando-lhes um útil toque de atenção". O informe de Yenukidze não recomendava, nem indicava, eleições secretas nem a ampliação dos direitos civis. (Stalin, Relatório ao XVII Congreso do P.C.; Zhukov, Inoy 124)



39. Os ministros e os seus colaboradores tinham que conhecer os assuntos de que se encarregavam se queriam ser eficazes na produção. Isto significava educação, e também conhecimentos técnicos no seu campo. Mas os líderes do Partido fizeram aos poucos as suas carreiras só através da ascensão aos altos escalões do Partido. Não se precisava muito conhecimento técnico para esse tipo de ascensão. E bem eram necessários critérios políticos. Estes funcionários do Partido exerceram o controle, ainda que lhes faltassem os conhecimentos práticos que, teoricamente, lhes facilitariam uma óptima supervisão. (Stalin-Howard Entrevista, Zhukov, Inoy, 305;Zhukov, "Represii" 6)



40. Isto era, aparentemente, o que a direcção de Stalin entendia por "burocratismo". Era algo visto como perigoso - no que coincidiam todas as correntes marxistas - mas não era considerado inevitável. Cuidaram que podia ser derrotado modificando o papel do Partido numa sociedade socialista.



41. O conceito de democracia que Stalin e os seus seguidores na direcção do Partido desejavam aplicar na União Soviética incluía uma mudança qualitativa no papel do Partido Bolchevique no seio da sociedade. Os documentos postos à disposição dos investigadores permitem compreender que já nos finais da década dos anos 30, houve intentos de separar o Partido e o Estado, e de limitar o papel do Partido na vida do país. (Zhukov, Tayny 8)

Stalin e os seus continuaram a luta com a oposição de outros elementos no Partido Bolchevique, com resolução, ainda que com cada vez menos possibilidades de vitória, até à morte de Stalin em 1953. A decisão de Lavrentii Beria de continuar esta luta talvez seja a autêntica causa da sua morte às mãos de Khruchev e dos seus colaboradores, se bem que de forma judicial, através de um processo baseado em acusações inventadas em Dezembro de 1953, ou bem - como muitas provas indicam - mediante o simples assassinato, em Junho desse mesmo ano.

42. O Artigo 3 da Constituição de 1936 manifesta: "Na URSS todo o poder pertence aos trabalhadores da cidade e do campo, representado pelos Sovietes de Deputados Operários". O Partido Comunista menciona-se no Artigo 126 como "a vanguarda da classe operária na luta por reforçar e desenvolver o sistema socialista, o partido é o núcleo dirigente de todas as organizações de trabalhadores, tanto estatais como públicas". Noutras palavras, o Partido dirigia "organizações", mas não os órgãos legislativos ou executivos do Estado. (Constituição de 1936; Zhukov, Tayny 29-30)



43. Parece que Stalin cuidou que, uma vez separado o Partido do controle directo sobre a sociedade, o seu papel devia limitar-se à agitação e à propaganda, e à participação na selecção de quadros. Que significaria isto? Talvez algo como o seguinte:



- O Partido regressaria à sua função essencial de ganhar o povo para os ideais do comunismo.

- Isto significaria o fim dos trabalhos cómodos, e o regresso ao estilo de trabalho duro que caracterizou os bolcheviques durante o Czarismo, a Revolução, a Guerra Civil, o período da NEP e a não menos dura etapa dos planos de industrialização e colectivização. Era algo necessário para conseguir uma base real entre as massas (Zhukov, KP Nov. 13 02; Mukhin, Ubiytvo).



44. Stalin insistia que os comunistas tinham que ser gente afeita ao trabalho duro, cultos, capazes de fazer uma contribuição positiva à produção e à criação da sociedade comunista. O próprio Stalin foi um incansável estudioso.



45. Resumindo, as provas indicam que Stalin considerava o novo sistema eleitoral apropriado para cumprir os seguintes objcetivos:



- Assegurar que a direcção da produção, e de toda a sociedade soviética, estivessem nas mãos de gente tecnicamente preparada.



- Deter a degeneração do Partido Bolchevique, e fazer regressar os militantes do Partido, especialmente os seus líderes, ás suas funções primárias: protagonizar a liderança na política e na moral, mediante o exemplo e a persuasão do resto da sociedade.



- Reforçar o trabalho do Partido entre as massas.



- Granjear o apoio dos cidadãos para o governo.



- Criar as bases para uma sociedade sem classes e comunista.

A Derrota de Stalin

46. Durante 1935, sob o mandato de Andrei Vyshinski, Fiscal chefe da URSS, muitos cidadãos que foram exilados, que foram encarcerados e - o fundamental para o nosso estudo - foram privados do direito ao voto, recuperaram os seus direitos. Centenas de milhares de antigos kulaks, proprietários ricos que foram vítimas da colectivização, e aqueles que foram encarcerados ou expulsos do país por se oporem à colectivização, foram libertados. Vyshinski criticou duramente o NKVD (Comissariado Popular para Assuntos Internos) pela "enorme quantidade de erros e equívocos" na deportação de quase 12.000 pessoas de Leningrado após o assassinato de Kirov em Dezembro de 1934. Declarou que adiante o NKVD não poderia prender ninguém sem autorização prévia do fiscal. Então, centenas de milhares de pessoas tiveram motivos para pensar que o Estado e o Partido foram injustos com eles. (Thurston 6-9; Zhukov, KP Nov 14. 1902 Zhukov, Inoy 187; Zhukov, "Represii" 7)



47. Originalmente, entre as intenções de Stalin para a nova Constituição estava a da participação de todas as forças políticas. Declarou isso na sua entrevista com Roy Howard a 1 de Março de 1936. Na reunião do Comité Central de Junho de 1937, Yakovlev - um dos membros do Comité Central que, juntamente com Stalin, mais trabalhara no desenho da nova Constituição (Zhukov, Inoy 223) - afirmou que a ideia de eleições abertas fora feita por Stalin. Esta sugestão encontrou uma ampla oposição por parte dos líderes regionais do Partido, dos Primeiros Secretários, ou a "partitocracia", como Zhukov os denominava. Após a entrevista com Howard não teve nem mesmo sequer um apoio nominal à declaração de Stalin sobre eleições abertas nos principais jornais, a maioria sob o controle directo do Politburo. O Pravda publicou um só artigo, a 10 de Março, e não mencionou o tema das eleições.



48. De tudo isto, Zhukov deduz:

"Isto só podia significar uma coisa. Não só a "ampla liderança" (os Primeiros Secretários regionais) mas também uma grande parte do aparelho do Comité Central, não aceitou as inovações de Stalin, e não quis aprovar, nem sequer de forma meramente nominal, as eleições, um perigo para muitos que, como se deduzia das palavras de Stalin que o Pravda sublinhou, ameaçava a posição e o poder dos Primeiros Secretários, os Comités Centrais dos partidos comunistas das nacionalidades, e os comités regionais de cidade e de outras áreas.” (Inoy, 211)


49. Os Primeiros Secretários mantinham os cargos, sem poder ser expulsos em nenhuma eleição. O imenso poder de que gozavam procedia do controle do Partido sobre cada um dos aparelhos econômicos e estatais: kolkhoses, fábricas, educação, exército...O novo sistema eleitoral privaria os Primeiros Secretários da sua condição de delegados nos Sovietes, e impediria que pudessen eleger delegados a seu gosto. Uma derrota deles, ou dos seus "candidatos" (os candidatos do Partido) nas eleições aos Sovietes seria uma chamada de atenção sobre o seu trabalho. Um Secretário cujos candidatos não fizessem frente aos candidatos não pertencentes ao Partido evidenciaria a sua fraca ligação com as massas. Durante as campanhas, os candidatos opositores centrariam as suas críticas em temas centrais como a corrupção, o autoritarismo ou a incompetência dos candidatos do Partido. Os candidatos derrotados mostrariam as suas fraquezas como comunistas, o que conduziria provavelmente à sua remoção do posto (Zhukov KP Nov. 13 02; Inoy 226; cf. Getty,"Excesses" 122-3)


50. Os líderes veteranos do Partido acumulavam muitos anos de militância, veteranos dos perigosos dias do czarismo, da Revolução, da Guerra Civil e da colectivização, quando ser comunista significava numerosos perigos e dificuldades. Muitos deles tinham uma pobre formação académica. Diferente de Stalin, Kirov ou Beria, a maior parte deles ou não tinham vontade ou não podiam "desenvolver-se a si mesmos" através da auto-educação. (Mukhin, Ubiystvo 37; Dimitrov 33-4; Stalin, Zastol'nye 235-6)



51. Todos estes militantes eram desde sempre os defensores das políticas de Stalin. Foram os que levaram adiante a dura colectivização do campesinato, na qual centenas de milhares foram deportados. Durante os anos 1932 e 1933, muita gente, talvez três milhões de pessoas, morreram de fome, uma fome originada por causas naturais e não humanas que fez ainda mais dura a expropriação e a colectivização do cereal para o campesinato, ou morreram nos levantes armados dos camponeses (que também causaram muitas vítimas entre os bolcheviques). Estes líderes do Partido estiveram de acordo com a industrialização acelerada, que se deu em pobres condições de vida (poucos alimentos, péssimas casas, paupérrimos cuidados médicos, salários baixos, etc.).



52. Agora, as eleições nas que podiam participar aqueles que até esse momento estavam privados do direito ao voto por terem combatido as políticas soviéticas, era provável que muitos militantes veteranos temessem que estes novos eleitores votassem contra os seus candidatos ou qualquer outro candidato bolchevique. A derrota dos seus candidatos punha em perigo o poder e os privilégios com que contavam. (Zhukov, KP Nov. 13 02; 1936 Const., Ch. X; cf. Getty, "Excesses" 125, sobre a importância do sentimento religioso no país)



Julgamentos, Conspirações, Repressão



53. Os planos para a nova Constituição e as eleições foram discutidos na reunião do Comité Central de Junho de 1936. Os delegados aprovaram por unanimidade o rascunho constitucional. Mas ninguém disse nada em prol do mesmo. Este fracasso em dar ao menos um apoio ritual a uma proposta de Stalin indicava certamente uma "oposição latente da direcção ampliada", uma "evidente falta de compromisso" (Zhukov, Inoy 232, 236; "Repressii" 10-11)

54. Durante o VIII Congresso dos Sovietes de toda Rússia, nos meses de Novembro e Dezembro de 1936, Stalin e Molotov insistiram de novo na importância de ampliar o direito ao voto e de eleições secretas e abertas. Na linha do espírito da entrevista de Stalin com Howard, Molotov sentiu os efeitos benéficos, para o Partido, de permitir candidatos não comunistas aos Sovietes:



"Este sistema...não pode fazer outras coisas que golpear a quem se move no burocratismo, facilitando a promoção de novas forças...tem que se potencializar para mudar os elementos mais atrasados ou burocratizados. Sob essa nova forma de eleições, é possível a eleição de elementos inimigos. Mas também este perigo, em última instância, tem que ajudar-nos, já que servirá de chicote para aquelas organizações que o precisem, e para os trabalhadores (do Partido) que ficaram adormecidos." (Zhukov, "Repressii" 15)

55. O próprio Stalin foi mais além:

"Alguns dizem que isto é perigoso, já que os elementos hostis ao poder soviético poderiam chegar aos níveis mais altos, alguns dos antigos guardas brancos, kulaks, sacerdotes, etc. Mas, que há a temer? Se tens medo dos lobos, não caminhes no bosque. Por um lado, nem todos os antigos kulaks, guardas brancos e padres são hostis ao poder soviético. Por outro, se o povo se deixa levar ali ou aqui por forças hostis, isto significará que o nosso trabalho de agitação está pobremente organizado, e que merecemos esta desgraça.” (Zhukov,Inoy 293; Stalin, "Draft")

56. Novamente, os primeiros secretários demonstraram uma tácita hostilidade. A reunião do Comité Central de Dezembro de 1936, cujas sessões coincidiram com as do Congresso, reuniu-se o 4 de Dezembro. Mas não houve nenhuma discussão do primeiro ponto da ordem do dia, o rascunho da Constituição. O relatório de Yezhov, "Sobre as organizações anti-soviéticas de direita e trotskistas" estava muito mais perto das preocupações dos membros do Comitê Central. ("Fragmenty” 4-5; Zhukov, Inoy 310-11)



57. A 5 de Dezembro de 1936 o Congresso aprovou o rascunho da nova Constituição, ainda que não tenha ocorrido realmente discussão. Contra essa discussão, os delegados (líderes do Partido) enfatizaram as ameaças dos inimigos exteriores e interiores. Mais que discursos de aprovação da Constituição, (tema principal sobre o qual tratou Stalin) os delegados Molotov, Zhdanov, Litvinov e Vyshinsky ignoraram virtualmente o tema da Constituição. Nomeou-se uma comissão para o posterior estudo do rascunho constitucional, sem decidir nada sobre as eleições abertas. (Zhukov, Inoy 294; 298; 309)



58. A situação era efectivamente muito tensa. A vitória dos fascistas na Guerra Civil do Estado espanhol era só uma questão de tempo. A União Soviética estava rodeada por potências hostis. Na segunda metade da década dos anos 30, absolutamente todos esses países eram regimes abertamente autoritários, militaristas, anti-comunistas e anti-soviéticos. Em Outubro de 1936, a Finlândia disparou contra a fronteira soviética. Nesse mesmo mês nasce o eixo Berlim-Roma, entre Hitler e Mussolini. Um mês mais tarde, o Japão une as suas forças à Alemanha nazi e à Itália fascista para formar o Pacto Anti-Komintern. Os esforços soviéticos para formar alianças militares contra a Alemanha nazi encontrou rejeição nas capitais ocidentais. (Zhukov, Inoy 285-309)



59. Na época em que o Congresso tratava da nova Constituição, tiveram lugar os dois principais julgamentos de Moscovo. Zinoviev e Kamenev foram julgados juntamente com outros em Agosto de 1936. O segundo julgamento, em Janeiro de 1937, afectava alguns dos principais seguidores de Trotsky, dirigidos por Yuri Piatakov, que até à bem pouco fora o Comissário Delegado de Indústria Pesada.



60. A reunião do Comitê Central de Fevereiro-Março de 1937 trouxe prontamente as contradições dentro da direcção do Partido: a luta contra os inimigos internos, e a necessidade de preparar eleições abertas e secretas sob a nova Constituição para o final do ano. A descoberta paulatina de mais e mais grupos que conspiravam para derrubar o governo soviético produziu um aumento da vigilância interna. Mas a preparação de eleições autenticamente democráticas, e o aperfeiçoamento na democracia interior do Partido (tema continuamente apoiado pelos mais próximos de Stalin dentro do Politburo) requeria precisamente o contrário: impulso à crítica e à autocrítica, eleições secretas dos líderes do Partido e acabar com a "cooptação" por parte dos Primeiros Secretários.



61. Essa reunião, a mais longa na história da URSS, prolongou-se por duas semanas. Mas nada disto soubemos até 1992, quando a volumosa transcrição dessa reunião começou a ser publicada no Voprosy Istorri, publicação que se prolongou durante quatro anos.



62. O relatório de Yezhov para continuar as investigações sobre as conspirações no país foi posto na sombra por Nikolai Bukharin, que, através de eloquentes confissões de passadas deslealdades, tentava distanciar-se dos seus antigos aliados, assegurando o seu compromisso com o governo soviético, mas que só lhe valeu para culpar-se a si mesmo posteriormente. (Thurston, 40-42; Getty e Naumov confirmam este ponto. 563)



63. Três dias depois, Zhadanov falou da necessidade duma maior democracia tanto no país como no Partido, invocando a luta contra a burocracia e a necessidade de laços mais fortes com as massas.



"O novo sistema eleitoral dará um poderoso impulso para o aperfeiçoamento do trabalho dos organismos soviéticos, a liquidação de instituições burocráticas, a eliminação de defeitos burocráticos e a deformação no trabalho das organizações soviéticas. Esses defeitos, como você sabe, são muito importantes. Os organismos do nosso Partido devem estar preparados para a luta eleitoral. Nas eleições teremos que contar com a agitação dos inimigos e com candidatos inimigos." (Zhukov, Inoy 343)



64. Não há dúvida que, como porta-voz da direcção estalinista, previa disputas eleitorais com candidatos não pertencentes ao Partido e opostos aos processos que se davam na União Soviética. Só este facto já derruba as versões da Guerra Fria e as explicações khruchevistas.



65. Zhdanov também repetiu durante longo tempo a necessidade de desenvolver normas democráticas dentro do mesmo partido bolchevique.



"Se queremos o respeito dos trabalhadores soviéticos e do Partido às nossas leis, das massas à Constituição soviética, temos que garantir a renovação do Partido sobre a base do estabelecimento das bases da democracia interna, como se reflecte nos regulamentos do nosso Partido."
"Enumero a continuação das medidas essenciais, já contidas no projeto de resolução do seu relatório: a eliminação da cooptação, a proibição das votações abertas; garantir o direito ilimitado dos membros do Partido a afastar os candidatos eleitos e o direito ilimitado para criticar estes candidatos". (Zhukov, Inoy 345)

66. O relatório de Zhdanov perdeu-se, porém, entre as discussões de outros pontos da ordem do dia, principalmente discussões sobre os "inimigos". Certo número de Primeiros Secretários ficou alarmado com o facto de alguns dos candidatos que se preparavam ou se supunha que se preparavam para as eleições soviéticas eram contrários ao poder soviético: sociais-revolucionários, padres e outros "inimigos".


67. Molotov replicou ressaltando, mais uma vez, "o desenvolvimento e o reforço da autocrítica", opondo-se directamente à "procura de inimigos":

"Não faz sentido procurar culpados, camaradas. Se quiseres, todos somos culpados, começando nos órgãos centrais do Partido e acabando nas organizações de base". (Zhukov, Inoy 349)

68. Mas as posteriores intervenções ignoraram o seu relatório, teimando na procura de "inimigos", na denúncia de "saboteadores", e a luta contra a "sabotagem". Na seguinte intervenção de Molotov, este fala da falta de atenção dada, fundamentalmente, à sua intervenção, que voltou a repetir, após resumir o que se estava a fazer contra os inimigos internos.


69. O discurso de Stalin de 3 de Março envolvia realçar a necessidade de melhorar o trabalho do Partido, suprimindo os incapazes, buscando novos camaradas. Como o de Molotov, o discurso de Stalin foi virtualmente ignorado.



"Desde o começo das discussões, os temores de Stalin foram compreensíveis. Parecia estar isolado por uma parede surda de incompreensão, de má vontade dos membros do Comitê Central que ouviram do relatório somente o que queriam ouvir, e discutiram só o que queriam discutir. Das 24 pessoas que participaram nas discussões, 15 falaram principalmente sobre os "inimigos do povo", ou seja, pode-se dizer, os trotskistas. Falaram com convicção, com agressividade, como o fizeram antes os relatórios de Zhdanov e Molotov. Reduziram todos os problemas a um: a necessária busca de "inimigos". E ninguém retomou o principal ponto de Stalin, sobre o mau funcionamento do trabalho nas organizações do Partido e a preparação para as eleições do Soviete Supremo." (Zhukov, Inoy, 357)





71. No seu discurso final do 5 de Março, último dia da reunião, Stalin minimizou a necessidade de procurar inimigos, inclusive trotskistas, muitos dos quais, segundo afirmou, regressaram ao Partido. O seu ponto principal foi a necessidade de impedir os funcionários do Partido de dirigir todos e cada um dos aspectos econômicos, combater a burocracia e elevar o nível político. Pode-se dizer, Stalin apostou em elevar o nível de crítica aos Secretários.

"Alguns camaradas pensam que sendo eles Comissários Populares, sabem tudo que há a saber. Cuidam que o posto, por si mesmo, garante grandes e infinitos conhecimentos. Ou bem pensam: "se sou um membro do Comitê Central, não o sou por acidente, já que logo, significa que sei tudo". Isso não é assim.” (Stalin, Zakliuchitel'noe;Zhukov, Inoy 360-1)

72. Algo que soava ameaçador para todos os dirigentes do Partido, incluindo os Primeiros Secretários, foi a afirmação de Stalin de que deveriam eleger dois quadros para substituí-los para que participassem do curso de educação política que ocorreria durante seis meses. Esta substituição era perigosa para os Secretários do Partido, que temiam que durante esse espaço de tempo fossem destinados a outros lugares, quebrando desta forma a estrutura do seu "clã" (outros dirigentes ao seu serviço), uma das primeiras causas da burocracia. (Zhukov, Inoy 362)



73. Thurston define o discurso de Stalin como "notavelmente suave", defendendo "a necessidade de aprender das massas, e de emprestar atenção ás críticas de baixo". Inclusive a resolução no relatório de Stalin tocava só superficialmente o tema dos "inimigos", tratando principalmente dos erros na organização do Partido e na sua direcção. Segundo Zhukov, que menciona esta resolução não publicada, nem um só dos seus 25 pontos estava relacionado principalmente com os "inimigos". (Thurston, 48-9;Zhukov, Inoy 362-4)



74. Após a reunião, os Primeiros Secretários protagonizaram virtualmente uma rebelião. Primeiro Stalin, e depois o Politburo, emitiram mensagens lembrando a necessidade de efectuar votações secretas no seio do Partido, opor-se à conduta de cooptação favorecendo as eleições, e a necessidade de generalizar a democracia interna no Partido. Os Primeiros Secretários continuaram a fazer as coisas como antes, independentemente das resoluções da reunião.



75. Nos meses seguintes, Stalin e os seus colaboradores mais chegados tentaram que o problema dos "inimigos" não fosse a principal preocupação dos membros do Comité Central, insistindo na luta contra a burocracia no Partido, e em preparar as eleições ao Soviete. Entretanto "os líderes locais do Partido fizeram tudo o que a disciplina do Partido lhes permitia, e ás vezes um pouco mais, para suspender ou retardar as eleições". (Getty, "Excesses" 126; Zhukov, Inoy 367-71)



76. A repentina descoberta, em Abril, Maio e primeiros dias de Junho de 1937, do que aparentemente era um amplo complô militar e policial fez crescer o pânico no governo de Stalin. Genrikh Yagoda, director de segurança e Ministro de Interior, foi preso no final de Março de 1937, começando as confissões em Abril. Em Maio e princípios de 1937, militares de alta patente confessaram a sua conspiração com o comando alemão para derrotar o Exército Vermelho no caso duma invasão por parte da Alemanha e dos seus aliados. Também confessou as suas relações de natureza conspirativa com políticos, incluindo muitos que ocupavam posições destacadas. (Getty, "Excesses" 115, 135; Thurston, 70, 90, 101-2; Genrikh I Agoda)



77. Esta situação era muito mais séria que todas as anteriores. Durante os julgamentos de Moscovo de 1936 e 1937, o governo concentrou todo o seu tempo a preparar os processos e a organizar julgamentos públicos, dotando-os de uma máxima publicidade. Mas esta conspiração militar foi tratada de uma forma muito diferente. Pouco mais de três semanas tinham passado, desde a data de detenção de Mikhail Tukhachevsky, finais de Maio, até ao julgamento e execução deste e de outros sete militares de alta patente nos dias 11 e 12 de Junho. Durante este período, centenas de milhares de comandos militares foram convocados para Moscovo para escutar as provas contra os seus colegas - os seus superiores, para a maior parte deles - e para escutar as alarmantes análises de Stalin e do marechal Voroshilov, Comissário do Povo para a Defesa, o militar de maior graduação no país.



78. Nas datas da reunião, Fevereiro e Março, nem Yagoda nem Tukhachevsky tinham sido ainda presos. Stalin e o Politburo tinham como objectivo que a Constituição fosse o principal ponto da agenda, colocando-se à defensiva ante o facto de que a maioria dos integrantes do Comité Central, ignorando este ponto, insistiram na batalha contra os "inimigos". O Politburo planeou que as reformas constitucionais fossem também o ponto essencial da reunião seguinte a celebrar em Junho de 1937. Mas a situação em Junho era muito diferente. A descoberta de complôs na direcção do NKVD e entre muitos destacados líderes militares para derrubar o governo e matar os seus dirigentes, mudou totalmente o clima político.



79. Stalin foi colocado na defensiva. No seu discurso de 2 de Junho à sessão ampliada do Soviete do Exército (reunido de 1 a 4 de Junho), descreveu as conspirações recentemente descobertas como "limitadas", e encerradas com grande êxito. Também, na reunião de Fevereiro-Março, ele e os seus apoiantes no Politburo minimizaram as amplificadas preocupações dos Primeiros Secretários sobre os "inimigos internos". Mas, como sublinha Zhukov, a situação "lenta, ia escapando decisivamente das suas mãos (de Stalin)". (Stalin, "Vystuplenie"; Zhukov, Inoy Ch. 16, passim; 411)



80. A reunião do Comité Central de Junho de 1937 começou com as propostas de reprovação, em primeiro lugar, de sete membros do Comité Central e candidatos por "falta de confiança política", e depois com as de mais 19 por "traição e actividades contra-revolucionárias". Estes 19 foram presos pelo NKVD. Outros dez membros do Comité Central foram expulsos por acusações da mesma natureza.



81. Yakovlev e Molotov criticaram o fracasso dos dirigentes do Partido em organizar eleições independentes nos Sovietes. Molotov defendeu inclusive a medida de afastar do caminho os revolucionários que evidentemente não estavam preparados para as tarefas do momento. Insistiu que os dirigentes dos Sovietes não eram "trabalhadores de segunda categoria". Evidentemente, os dirigentes do Partido estavam a tratá-los desse modo.



82. Yakovlev argumentou e criticou o fracasso dos Primeiros Secretários na hora de realizar eleições secretas para os postos do Partido, apoiando-se, por estar contra, as nomeações ("cooptação"). Destacou a necessidade de que os membros do Partido eleitos nos Sovietes não estivessem ás ordens de grupos do Partido, fora dos Sovietes, que condicionavam as suas posições. Que o seu voto não fosse o assinalado pelos seus superiores no Partido, como os Primeiros Secretários. Tinham que ser independentes. Yakovlev utilizou os termos mais duros para se referir à necessidade de "colocar a mão na mais rica reserva dos novos quadros para substituir aqueles corrompidos ou burocratizados". Todas estas afirmações constituem um ataque explícito aos Primeiros Secretários. (Zhukov, Inoy 424-7; Tayny, 39-40, citando documentos de arquivo)



83. A Constituição foi finalmente concluída, fixando-se o 12 de Dezembro de 1937 como data das primeiras eleições. Os dirigentes chegados a Stalin argumentaram, mais uma vez, as vantagens da luta contra a burocracia e de criar laços com as massas. Porém, tudo isto foi posterior à expulsão sumária e sem precedentes dos 26 membros do Comité Central da que falamos no ponto 80. (Zhukov, Inoy 430)



84. Talvez o mais revelador seja a seguinte observação de Stalin, comentada por Zhukov:
"Concluindo as discussões, quando o tema era a procura de um método mais confiável para a recontagem dos votos, (Stalin) comentou que no Ocidente, graças a um sistema multi-partidário, este problema não existia. Imediatamente depois, murmurou uma frase bastante rara para um encontro desse tipo: "Nós não temos partidos políticos diferentes. Afortunada ou desafortunadamente temos só um partido." (Sublinhado por Zhukov) Para passar a propor, ainda que só provisoriamente, utilizar para essa recontagem e supervisão de membros de todas as organizações sociais existentes, menos as do Partido Bolchevique...O desafio à autocracia do Partido estava sobre a mesa" (Zhukov,Inoy 430-1; Tayny 3)



85. O Partido Bolchevique padecia de uma grave crise, sendo impossível pensar que as coisas se desenvolveriam com suavidade. Era a pior situação possível para organizar eleições democráticas (secretas, universais, abertas). A ideia de Stalin de reformar o governo soviético e o papel do Partido Bolchevique nessa mesma reforma estava condenada.



86. Concluindo essa reunião, Robert Eikhe, Primeiro Secretário da região do Krai, no oeste siberiano, falou em particular com Stalin, como também o fizeram outros Primeiros Secretários. Provavelmente, solicitaram os poderes que pouco depois obtiveram: a autorização para formar troikas, grupos de três dirigentes organizados para combater a possibilidade de conspirações contra o governo soviético nas suas regiões. (Estas troikas receberam o poder de execução sem apelação. Impuseram-se limites no número de executados e prisioneiros baseando-se no poder destas troikas. Quando estes limites foram esgotados, os Primeiros Secretários solicitaram limites superiores, petição que foi concedida. Zhukov pensa que Eihke podia estar a representar um grupo informal de Primeiros Secretários (Getty, "Excesses" 129;Zhukov, Inoy 435).



87. Quem foram os visados desses draconianos julgamentos por parte destas troikas? Zhukov pensa que foram os lishentsy, aqueles cujos direitos de cidadania, incluindo o direito a voto, foram recentemente restaurados, e que sopunhan potencialmente o maior perigo para a continuidade no poder dos Primeiros Secretários. Zhukov descarta totalmente a existência de conspirações reais. Mas os documentos de arquivo recentemente publicados evidenciam que, no mínimo, a direcção central estava continuamente a receber relatórios de conspirações, incluindo transcrições de confissões. Stalin e outros, certamente, acreditaram nestas conspirações. A minha opinião é que pelo menos algumas das conspirações foram reais, e que os Primeiros Secretários acreditaram nelas. (Zhukov, KP Nov. 13 02; Inoy, Ch. 18; "Repressii" 23;Lubianka B)



88. Outra hipótese é a de que qualquer um que estivesse relacionado com qualquer tipo de movimento opositor era impiedosamente visto como "inimigo", e sujeito a detenção e interrogatório por parte do NKVD, que tinham sempre um membro como parte da troika. Outro grupo eram aqueles que expressaram abertamente desconfiança ou ódio no que diz respeito ao sistema soviético em conjunto. Thurston cita provas de que estes indivíduos eram imediatamente presos. Porém, aqueles que manifestavam críticas aos líderes locais do Partido não eram molestados, enquanto os criticados, incluindo membros do Partido, às vezes, sim, eram presos. (Thurston, 94-5)

89. Portanto, contra aqueles que argumentam que as conspirações foram ilusões na mente paranoica de Stalin ou, ainda pior, mentiras destinadas a reforçar a sua obsessão megalômana pelo poder, existem provas abundantes que demonstram a existência de conspirações reais. Os relatos dos conspiradores que conseguiram sair mais tarde da URRS confirmam isto. A numerosa documentação policial sobre estas conspirações, muito pouco publicada, é um poderoso argumento contra a teoria de que tudo foi uma montagem. E mais, as anotações de Stalin nestes documentos reafirmam o facto de que pensava que eram certas. (Getty, "Excesses" 131-4; LubiankaB)



90. Getty resume esta contradição da seguinte maneira:



Stalin ainda não era partidário de retirar as eleições, e em 2 de Julho de 1937 o Pravda desautorizou claramente os secretários regionais publicando o primeiro decreto das novas regras eleitorais, animando e apoiando as eleições secretas e universais. Mas Stalin lançou um compromisso. No mesmo dia que se publicou a lei eleitoral, o Politburo aprovou uma campanha massiva contra, precisamente, os elementos de que se queixaram os líderes locais, e horas mais tarde, Stalin enviou um telegrama aos líderes internos do Partido ordenando a Operação Kulak (contra os lishentsy, G.F.). É difícil evitar a conclusão de que ao contrário de obrigar os líderes locais do Partido a participar nas eleições, Stalin decidiu ajudá-los a ganhar dando-lhes licença para eliminar ou deportar centenas de milhares de "elementos perigosos". ("Excesses" 126)



91. Independentemente de qual fosse a história destes expurgos, execuções extra-judiciais e deportações, parece que Stalin pensava que se estavam a criar as condições para as eleições livres e abertas. Porém, estas acções minaram qualquer possibilidade de eleições de qualquer tipo.



92. O Politburo tentou num primeiro momento limitar a campanha de repressão ordenando que parasse dentro de cinco dias. Ainda não sabemos a razão, se foi por convencimento ou por ver-se obrigados, o certo é que o NKVD teve permissão para ampliar este período em quatro meses, de Agosto a Dezembro. Foi pelo alto número de detidos? Pelo convencimento da existência de numerosas conspirações que constituíam uma grande ameaça interna? Não conhecemos os detalhes dessa repressão massiva.



93. Este era precisamente o período no qual ia ter lugar a campanha eleitoral. O Politburo continuou a organizar estas eleições, regulamentando o sistema de votação e informando os funcionários como tinham que agir, os chefes locais controlavam a repressão. Assim, estes podiam determinar que oposição ao Partido (a eles mesmos) se podia considerar "leal" e qual era merecedora de repressão. (Getty,"Excesses," passim.; Zhukov, Inoy 435)



94. Existem documentos originais que demonstram que Stalin e seu grupo no Politburo estavam convencidos que os conspiradores anti-soviéticos estavam activos, e que tinham de enfrentá-los. Isto foi o que afirmaram os líderes regionais do Partido durante a reunião de Fevereiro-Março. Nestas datas, a direcção de Stalin minimizava o perigo, e mantinha a atenção na Constituição, na necessidade de preparar eleições e a troca da burocratizada e velha liderança por outra formada por novos líderes.



95. Para a reunião de Junho, os secretários regionais estavam numa posição em que podiam dizer: "Estava avisado. Tínhamos razão, e ainda a temos; há perigosos conspiradores activos, prontos para utilizar a campanha eleitoral com o propósito de provocar revoltas contra o governo soviético". Foi assim que sucederam as coisas? Parece possível, mas não podemos estar seguros.



96. Stalin e a direcção central não conheciam a extensão destas conspirações. Não sabiam o que podiam fazer os nazis alemães e os fascistas japoneses. No dia 2 de Junho, no Encontro ampliado do Soviete Militar, Stalin afirmou que o grupo de Tukhachevsky entregara ao Alto Comando alemão os planos operacionais do Exército Vermelho. Isto significava que os japoneses, unidos por uma aliança militar (o Eixo) e uma aliança política anti-comunista (o Pacto Anti-Komintern na realidade, era um pacto anti-soviético) com a Itália fascista e a Alemanha nazi, também os teriam.



97. Stalin disse aos líderes militares que os conspiradores queriam converter a URSS noutro Estado espanhol, ou seja, numa Quinta Coluna coordenada com um exército fascista invasor. Dado este terrível perigo, a direcção soviética estava decidida a reagir com uma determinação brutal. (Stalin, "Vystuplenie")

98. Ao mesmo tempo, muitas provas apontam que o comando central (Stalin) queria reduzir a repressão das troikas impulsionada pelos Secretários regionais e continuar a integrar as eleições na nova Constituição. De 5 ao 11 de Julho a maioria dos Secretários copiou a iniciativa de Eikhe de comunicar cifras precisas dos presos, mediante execução (categoria 1) ou encarceramento (categoria 2). De início, em 12 de Junho, o Comissário delegado do NKVD, Frinovskii, enviou um telegrama urgente a todas as oficinas da polícia local: "Não iniciem operações de repressão contra antigos kulaks, Repito, não as iniciem". (Getty, "Excesses" 127)

99. Depois dos chefes locais do NKVD serem chamados a Moscovo para conversar, foi emitida a ordem número 447. Esta longa e detalhada instrução ampliava o campo de repressão (basicamente padres com histórico de oposição ao sistema soviético e criminosos), ainda que, de modo geral "diminuía os limites e as cifras requeridas pelos secretários das províncias". Todas estas hesitações fazem pensar em desacordos e lutas entre o "centro" - Stalin e o seu grupo no Politburo - e os Secretários das províncias. Não há dúvida que Stalin não tinha o comando (Order No. 00447; Getty, "Excesses" 126-9).

100. O plenário do Comité Central de Outubro de 1937 foi o da suspensão definitiva do projecto para umas eleições abertas. Um modelo de candidaturas, com diversos candidatos, fora já desenhada. Conservam-se bastantes em diferentes arquivos. Como substituição estabeleceu-se que, para as eleições aos Sovietes de Dezembro de 1937, os candidatos do Partido compartilhavam as listas com uma percentagem de candidatos alheios ao Partido de entre os 20 e os 25%. Zhukov encontrou nos arquivos o documento original em que Molotov, a 11 de Outubro às seis da tarde, cancelava as eleições abertas. Isto representou uma derrota para Stalin e seus seguidores no Politburo (Zhukov, KP 19 Nov. 02; Zhukov, Tayny. 41; Inoy 443).



101. Foi também no Plenário do Comité Central que se pronunciou o primeiro protesto contra a repressão massiva, por parte do Primeiro Secretário de Kursk, Peskarov:

"Eles (o NKVD?, as troikas? G.F.) condenam pessoas por minúcias...ilegalmente, e quando nós levamos a questão ao Comité Central, recebemos o decidido apoio dos camaradas Stalin e Molotov, que enviaram uma brigada de funcionários da Corte Suprema e da Oficina do Fiscal para fiscalizar estes casos...após três semanas de trabalho desta brigada, o resultado foi que 56% destas sentenças em 16 regiões foram consideradas ilegais. Ainda mais, em 45% destas sentenças não existiram provas de que se cometera algum delito". (Zhukov, Tayny, 43)

102. Na reunião de Janeiro de 1938, Makenkov apresentou uma forte crítica da grande quantidade de membros do Partido expulsos e de cidadãos julgados, na maior parte inclusive sem proporcionar listas de nomes, somente indicando o número de expulsos. Postyshev, Primeiro Secretário de Kuybyshev, foi eliminado como candidato ao Politburo por dizer que "não havia nenhum elemento honrado" entre todos os funcionários do Partido.

103. Parece que o NKVD funcionava de forma independente, pelo menos em algumas zonas. Sem dúvida, os Primeiros Secretários também faziam assim. (Zhukov, KP 19 Nov. 02; Tayny, pp. 47-51; Thurston 101-2; 112) Porém, a preocupação dos líderes do Politburo era a existência de conspiradores. A magnitude dos abusos do NKVD não foi reconhecida. Como indica Zhukov, o relatório de Malenkov (culpando os oportunistas no interior do Partido pelas expulsões massivas e detenções) foi continuado por Kaganovich e Zhadanov, que seguiram insistindo na luta contra os inimigos e prestaram apenas uma ligeira atenção à "ingenuidade e ignorância" do trabalho dos "bolcheviques honrados".

104. O Pravda, sob controlo dos seguidores de Stalin, fazia ainda avisos para afastar o Partido da direcção directa dos assuntos econômicos, e a necessidade de promover os não-militantes aos postos de liderança. (Zhukov, Tayny 51-2) Enquanto Nikita Khrushev, que em 1937 exigira autorização para poder executar 20.000 pessoas quando era responsável do Partido em Moscovo, foi enviado para a Ucrânia, onde, no prazo de um mês, reclamou poderes para reprimir 30.000 pessoas. (Zhukov, Tayny 64, ver n.23)

105. Parece que Nicolai Yezhov, substituto de Genrikh Yagoda em 1936 no comando do NKVD, estava estreitamente relacionado com os Primeiros Secretários. A massiva repressão dos anos 1937-1938 esteve tão ligada ao seu nome que ainda se conhece como a "Yezhovshchina". Yezhov deixou o seu posto a 23 de Setembro de 1938, sendo substituído em Novembro desse ano por Lavrentii Beria.

106. Sob o comando de Béria, muitas das chefias do NKVD e Primeiros Secretários responsáveis por milhares de execuções e deportações foram julgados, e muitos deles executados por levar à morte gente inocente e fazer uso da tortura contra os detidos. As transcrições dos julgamentos de alguns dos funcionários policiais que utilizaram a tortura foram publicadas. Numerosos presos e acusados, deportados ou enviados aos campos de trabalho foram libertados. O próprio Béria manifestou que a sua missão era "acabar com a Yezhovshchina". Stalin disse ao engenheiro aeronáutico Yakovlev que Yezohv foi executado por assassinar milhares de inocentes. (Lubianka B, Nos. 344; 363; 375; Mukhin, Ubiystvo 637; Yakovlev)

107. Foi feito um incalculável dano à sociedade soviética, ao governo soviético e ao Partido Bolchevique. Há muito tempo que sabemos isto, evidentemente. O que não sabia-mos até agora é que a implantação das troikas e as cotas de execuções e deportações se deviam à insistência dos Primeiros Secretários, e não a Stalin. Zhukov pensa que a estreita relação entre isto e a ameaça de eleições abertas, e o facto do Comité Central conseguira forçar a direcção de Stalin e os seus colaboradores a cancelar essas eleições, indica que a forma de evitar essa "ameaça eleitoral" foram as detenções massivas e as execuções da "Yezhovshchina". (Zhukov, KP)

108. Ninguém pode absolver Stalin e os que o apoiaram, das amplas responsabilidades que tiveram nas execuções, que foram de bastantes centenas de milhares. Se as vítimas fossem encarceradas ao invés de executadas a maioria teria sobrevivido. Muitos veriam os seus casos revistos, e seriam libertados. Para os nossos objectivos neste trabalho, a pergunta chave é:

Porque cedeu Stalin ante as solicitações dos Primeiros Secretários, solicitações que lhes concediam o destino de milhares de pessoas? Pode ser que não existam desculpas, podem existir razões.

109. Nenhum outro governo está preparado para traições simultâneas por parte de altos comandos militares, figuras de primeira fila do governo nacional e de governos regionais, e da direcção da polícia secreta e de fronteiras.

110. Um grave conjunto de conspirações, que incluía tanto actuais líderes do Partido como anteriores, com ligações a todo o país, acabava de ser descoberto. O mais ameaçador era a participação de destacados militares dos níveis mais altos, com a revelação dos planos secretos militares aos inimigos fascistas. A conspiração militar tinha contactos em toda a URSS, e nela estavam também os principais líderes do NKVD, incluindo Genrikh Yagoda, que dirigiu este organismo entre os anos 1934 e 1936. Pode-se dizer que não se conhecia a amplitude da conspiração e quanta gente estava implicada. O caminho prudente era pensar o pior.

111. O Politburo e Stalin estavam no cume de duas amplas hierarquias, a do Partido e a governamental. O que sabiam sobre o estado das coisas no país era o que os seus subordinados lhes diziam. No decorrer dos seguintes doze meses reprimiram muitos dos Primeiros Secretários, indo parar à prisão metade deles. Na maioria dos casos, os cargos concretos e as transcrições dos seus interrogatórios continuaram sem ser publicados, inclusive na Rússia pós-soviética e anti-comunista. Mas agora contamos com bastantes provas das investigações que efectuaram Stalin e o Politburo para fazer uma ideia da alarmante situação que enfrentavam. (Lubianka B)

112. O Partido Bolchevique guiava-se pelo centralismo democrático. Malgrado a sua popularidade em toda a URSS, Stalin (como qualquer outro líder do partido) podia ser derrotado por uma maioria do Comité Central. Não estava em situação de ignorar pressões e urgências por parte de um amplo número de membros do Comité Central.

113. Como ilustração da incapacidade de Stalin para impedir que os Primeiros Secretários burlassem os princípios que inspiravam as eleições democráticas, Zhukov menciona um incidente que teve lugar num plenário do Comité Central em Outubro de 1937. Kravtsov, Primeiro Secretário do Kraikom (Comité Rexional G.F.) de Krasnodar foi o único que reconheceu o que os seus colegas fizeram secretamente nas semanas anteriores. Fixou um perfil da selecção daqueles candidatos a deputados do Soviete Supremo que se ajustavam aos interesses da "liderança ampla".

"Apresentamos os nossos candidatos ao Soviete Supremo", manifestou com sinceridade Kravtsov.

"Quem são estes camaradas? Oito são membros do Partido, dois não são membros nem do Partido nem do Komsomol. Assim cumprimos com a percentagem de candidatos não membros do Partido que aprovou o Comitê Central. Por sua ocupação, estes camaradas classificam-se em: quatro empregados do Partido, dois empregados no Soviete, um secretário de Kolkhoz, um condutor, um tractorista, um trabalhador do sector do combustível...

Stalin: Quem são?

Kravtsov: Entre os dez está Yakovlev, Primeiro Secretário do Kraikom e secretário do Comité Executivo do Krai.

Stalin: Quem te aconselhou isso?

Kravtsov: Tenho que dizer, camarada Stalin, que fui aconselhado aqui, no Comité Central.

Stalin: Quem?

Kravtsov: Aqui, no Comité Central, designamos o nosso secretário do Comité Executivo do Krai, o camarada Simochkin, e contou com a aprovação do Comité Central.

Stalin: De quem?

Kravtsov: Não sei, não posso dizer quem.

Stalin: É uma pena, magoa que não possas dizer quem, porque te informaram muito mal." (Zhukov, Inoy 486-7)

114. Evidentemente, todos os Primeiros Secretários estavam a fazer o que só Kravtsov afirmou, ignorar o princípio de eleições secretas ao Soviete, princípio que eles votaram num plenário anterior, mas que nunca aceitaram na prática. Isto assinala a derrota definitiva de Stalin neste tema, as reformas constitucionais e eleitorais que ele e outros líderes centrais encabeçaram durante dois anos.

115. A reforma democrática foi derrotada, e o antigo sistema político manteve o seu lugar. O plano de Stalin para eleições abertas desapareceu para sempre: "Deste modo, a tentativa de Stalin e do seu grupo de reformar o sistema político da União Soviética resultou num rotundo fracasso". (Zhukov, Inoy 491)

116. Zhukov pensa que, se Stalin rejeitasse as exigências de poderes extraordinários por parte dos Primeiros Secretários, seria provável que este fosse destituído, detido por ser contra-revolucionário e executado"...Hoje Stalin estaria entre as vítimas da repressão de 1937, e o "Memorial" e a comissão de A. N. Yakovlev estaria desde há muito tempo reclamando a sua reabilitação". (Zhukov, KP 16 Nov. 02)

117. Em Novembro de 1938, Lavrentii Beria assumiu o posto de Yezhov como chefe do NKVD. As "troikas" foram abolidas. As execuções extra-judiciais acabaram e os responsáveis pelos terríveis excessos foram julgados e executados ou encarcerados. Mas a guerra estava perto. O governo francês negou-se a continuar com a já muito fraca aliança franco-soviética (A URSS desejava uma muito mais forte). Os aliados cederam a Checoslováquia a Hitler e aos fascistas polacos, sem nenhum tipo de luta. A Alemanha nazi conseguiu um acordo e uma aliança com o governo fascista da Polónia, com a ideia de invadir a URSS. No Estado espanhol, o grupo republicano, a quem os soviéticos tanto ajudaram, estava à beira de perder a guerra. A Itália invadiu a Etiópia, sem que a Liga de Nações fizesse nada. França e Inglaterra, com o apoio da maioria da Europa ocidental, incentivavam descaradamente Hitler para que invadisse a URSS. (Lubianka B, No. 365; Leibowitz)

118. Japão, Itália e Alemanha tinham um tratado de mútua defesa, e um pacto "Anti-Komintern", ambos expressamente dirigidos contra a União Soviética. Todos os países europeus fronteiriços (Polónia, Roménia, Bulgária, Hungria, Finlândia, Estónia, Letónia e Lituânia) eram ditaduras militares de pendor fascista. Em 1938, um ataque japonês em Khazan causou uns 1.000 mortos no Exército Vermello. Um ano depois, outro ataque japonês, desta vez em Khalkin-Gol, foi repelido pelo Exército Vermelho. As baixas soviéticas ascenderam a 17.000, incluindo quase 5.000 mortos; apesar das baixas, o triunfo soviético foi decisivo já que o Japão não voltou a atacar a URSS. Porém, nesse período, o governo soviético não tinha certeza disso. (Rossiia I SSSR v Voynakh)

119. Após 1938, o governo de Stalin não voltou a tentar colocar em prática o sistema democrático eleitoral reflectido na Constituição de 1936. Isto mostrava o ponto morto a que se chegara entre Stalin e os Primeiros Secretários no Comité Central? Ou, pelo contrário, dominava a ideia que, com uma guerra ás portas, os esforços democratizantes tinham que aguardar tempos mais pacíficos? As provas com que contamos não permitem uma conclusão firme.

120. Porém, com a substituição de Yezhov por Beria (formalmente em Dezembro de 1938, na prática umas semanas antes) teve lugar um contínuo processo de reabilitações. Beria libertou uns 100.000 prisioneiros de campos de trabalho forçado e prisões. Isto foi seguido dos julgamentos contra os dirigentes do NKVD acusados de torturas e execuções extra-judiciais. (Thurston 128-9)